Os pés do Sr.Monteiro * série 2006 - Ed. Paradoxo

Monteiro acabara. A loja de sapatos, fechada. Era pior que estar morto. Trabalhava no ramo há muito tempo. Não havia aquele que não o conhecesse. Quase todos os pés da cidade lhe tinham passado pelas mãos. Tudo para se firmar no negócio. A falência o atingira menos que a falta dos pés de Luzia.

Não se importava de estar nas mãos de fiadores; que os credores lhe importunassem à porta de casa, ou mesmo as reclamações trabalhistas feitas pelos empregados. Estava profundamente atingido naquele afe­to: ver os pés de Luzia. Pequenos e formosos. Somavam-se às pernas finas, porém nada o desconcertava. Sorria ao vê-la aproximando-se da loja. Trocavam uma ou duas palavras. Saíam tímidas. E logo — Moça, se eu pudesse te roubar um beijo...

Luzia se ria. Agitava as tranças. O passo apressado, mas com o ouvido lá, parado, nas palavras do sr. Monteiro. Parava na esquina, olhos baixos, catando a sombra dele como uma flor. Ele, entendido dos gestos e do significar do silêncio, arrumava logo uma entrega e deixava a loja.

Luzia intensa através do próprio corpo. Preparou os pés numa bacia de leite de cabra. Perfumou cada um dos de­dos. Pintou cuidadosamente cada unha. Lixou a sola dos pés.

A pele, papel tão fino, que mesmo o vento ameaçava rasgá-la.

Monteiro lhe arrebatava. Luzia era sacudida. O êxtase o tornava impaciente. Um brilho lhe subia aos olhos. Sen­tada na poltrona, ela aguardava o desfecho. Quando Mon­teiro abria as caixas de sapatos. Um festival de sandálias e botas se espalhava por todo o ambiente. Luzia acompa­nhava com atenção o frenesi com que ele escolhia o par. O olhar doce voltado para Luzia. A voz em tom igual, comportava um pedido infantil. Nesta hora, Monteiro se atrapalhava.

Fazia uso de um preciosismo que a enchia de cócegas:
– Veste pra mim. E levando os pés quase à altura da cabeça, Luzia vestia o sapato nos pés tão pequenos e tão bonitos. A comoção de Monteiro espantava.

– Anda um pouquinho com eles.
Luzia ria baixinho. Quase de vergonha.

– Agora pisa em mim.
Ela, tímida, obedecia.

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