Sobre a Cidade, Sobre a Cultura
A entrevista concedida por Marcio-André ao site Fórum de Literatura Brasileira é contundente, arrebatadora e entristecedora. Tudo isso a um só tempo.
Quando proclama que existe um processo de exclusão de determinadas áreas da cidade em detrimento de outra, denunciando uma ideologia vazia que se instala de que parte da Zona Oeste e toda a Zona Norte não passam de bairros – dormitórios sem nenhuma chance de interferir na construção da imagem da cidade surpreende:
“E qualquer um que proponha uma outra cidade, uma cidade sonhada de dentro para fora, uma cidade que se queira outra coisa que não a pseudo-Paris de botequins-butiques do Leblon, será tachado de provinciano.”
E não é menor a surpresa quando demonstra que há capitanias hereditárias no setor cultural desse país, acentuadamente nas capitais como o Rio de Janeiro:
“Eles são completamente incompetentes para pensar a cidade, uma vez que o seu papel de intelectual é um embuste atribuído hereditariamente de geração em geração, através dos vícios e segregações que tornaram a cidade o que ela é. Não deixa de ser simbólico o fato de ser filho de um grande figurão a pessoa responsável pela crítica que você menciona. Há hoje uma geração de “filhos de”que, atrelada à geração dos “amigos de”,“primos de”, “cunhados de” e “viúvas de”, promove uma verdadeira suruba de troca de influências com o único propósito de não largar o osso, num país que sequer fez uma reforma agrária ou social (é uma lógica maquiavélica – fundamento de uma segregação invisível, onde o próprio segregador se recusa ou finge não percebê-la). “
A percepção de desestruturação de qualquer voz discordante que logo é vetada pelo poder desta inteligência que contempla a si própria quando se decide a passar o bastão, manutencionar os espaços de debate e intervir sobre o que aceito e tolerável sofrem a crítica do poeta- ensaísta.
Alarga sua visão quando se discute a formação de um público leitor e os problemas que isso encontra na geografia da cidade e como este diálogo está comprometido:
“Sinceramente: para os caras que vão me tachar de provinciano. Os rapazes e moças cuidadosos, esses que conseguem abrir um livro, qualquer que seja, e discernir a fundo o que está escrito ali, não precisam dos Ensaios. Ele só descreve o que essas pessoas já sabem. Nesse sentido, os Ensaios é que precisam deles. São eles que potencializarão a escrita do livro com a sua própria força de contaminação. Pois os livros não são a salvação de nada – sobretudo os Ensaios radioativos. Os livros enganam apenas àqueles que lhes dão valor suficiente para, por pura ingenuidade, acreditar na sua dessacralização – como se em algum momento ele tivesse sido algo sagrado. A cultura do livro (pelo menos da forma que ela chegou até nós) é nefasta. As políticas de leitura no mundo são alavancadas por editoras que querem fazer dinheiro como se vendessem
cigarros (sendo que cigarros são coisas mais honestas). Para elas, pouco importa esse papo de “poder transformador” do livro sobre o leitor, mas a quantidade de livros que ele deve consumir. Num país a meio caminho de lugar nenhum, como o Brasil, nem a isso se presta. Aqui, a cultura do livro serve à segregação social, racial e cultural. Quantas livrarias existem na Zona Norte do Rio? Quantos favelados podem entrar numa livraria no Leblon? Então é difícil enxergar no livro esse tal valor dignificador apregoado há séculos por nossa tradição iluminista. Acredito, verdadeiramente, que um livro hoje só tem algum sentido se for para destruir a própria cultura do livro. Pode parecer uma contradição, mas o melhor ataque, todos sabem, é aquele que utiliza as próprias forças do alvo, o que ele tem de mais inflamável. E o mais inflamável, nesse caso, é tornar o livro um antilivro. Dizer o contrário do que se espera que um livro diga. Destruir o livro como fetiche, com uma violência tal que se faça perceber que o próprio “conhecimento” é uma farsa. Quando evidenciamos essa farsa, a coisa acaba soando mais como brincadeira. E a brincadeira é justamente o espaço em que os “brinquedos” podem ser destruídos em prol da própria brincadeira. É somente aí, na frequência do lúdico, que o conhecimento pode começar a tornar-se libertário.”
As proposições de Marcio-André merecem reflexão. As respostas estudadas, centradas e um tanto polêmicas dão conta de um intelectual combativo, que conhece verdadeiramente os problemas de se assumir desta forma, sem o consentimento da nobreza dos que detém nesse país a permissão para o pensamento.
Se não se pode concordar com todo o teor da entrevista, pode-se ao menos concordar que é inquietante, que move-nos para um outro sentido na captura do espaço urbano e por conseguinte o território cultural, com a reflexão inevitável: por que há tantas barreiras a serem transpostas nessa cidade?
Fonte:http://www.forumlitbras.letras.ufrj.br/entrevistamarcioandre.pdf?total=412115&carregando=410436&porcentagem=99
Quando proclama que existe um processo de exclusão de determinadas áreas da cidade em detrimento de outra, denunciando uma ideologia vazia que se instala de que parte da Zona Oeste e toda a Zona Norte não passam de bairros – dormitórios sem nenhuma chance de interferir na construção da imagem da cidade surpreende:
“E qualquer um que proponha uma outra cidade, uma cidade sonhada de dentro para fora, uma cidade que se queira outra coisa que não a pseudo-Paris de botequins-butiques do Leblon, será tachado de provinciano.”
E não é menor a surpresa quando demonstra que há capitanias hereditárias no setor cultural desse país, acentuadamente nas capitais como o Rio de Janeiro:
“Eles são completamente incompetentes para pensar a cidade, uma vez que o seu papel de intelectual é um embuste atribuído hereditariamente de geração em geração, através dos vícios e segregações que tornaram a cidade o que ela é. Não deixa de ser simbólico o fato de ser filho de um grande figurão a pessoa responsável pela crítica que você menciona. Há hoje uma geração de “filhos de”que, atrelada à geração dos “amigos de”,“primos de”, “cunhados de” e “viúvas de”, promove uma verdadeira suruba de troca de influências com o único propósito de não largar o osso, num país que sequer fez uma reforma agrária ou social (é uma lógica maquiavélica – fundamento de uma segregação invisível, onde o próprio segregador se recusa ou finge não percebê-la). “
A percepção de desestruturação de qualquer voz discordante que logo é vetada pelo poder desta inteligência que contempla a si própria quando se decide a passar o bastão, manutencionar os espaços de debate e intervir sobre o que aceito e tolerável sofrem a crítica do poeta- ensaísta.
Alarga sua visão quando se discute a formação de um público leitor e os problemas que isso encontra na geografia da cidade e como este diálogo está comprometido:
“Sinceramente: para os caras que vão me tachar de provinciano. Os rapazes e moças cuidadosos, esses que conseguem abrir um livro, qualquer que seja, e discernir a fundo o que está escrito ali, não precisam dos Ensaios. Ele só descreve o que essas pessoas já sabem. Nesse sentido, os Ensaios é que precisam deles. São eles que potencializarão a escrita do livro com a sua própria força de contaminação. Pois os livros não são a salvação de nada – sobretudo os Ensaios radioativos. Os livros enganam apenas àqueles que lhes dão valor suficiente para, por pura ingenuidade, acreditar na sua dessacralização – como se em algum momento ele tivesse sido algo sagrado. A cultura do livro (pelo menos da forma que ela chegou até nós) é nefasta. As políticas de leitura no mundo são alavancadas por editoras que querem fazer dinheiro como se vendessem
cigarros (sendo que cigarros são coisas mais honestas). Para elas, pouco importa esse papo de “poder transformador” do livro sobre o leitor, mas a quantidade de livros que ele deve consumir. Num país a meio caminho de lugar nenhum, como o Brasil, nem a isso se presta. Aqui, a cultura do livro serve à segregação social, racial e cultural. Quantas livrarias existem na Zona Norte do Rio? Quantos favelados podem entrar numa livraria no Leblon? Então é difícil enxergar no livro esse tal valor dignificador apregoado há séculos por nossa tradição iluminista. Acredito, verdadeiramente, que um livro hoje só tem algum sentido se for para destruir a própria cultura do livro. Pode parecer uma contradição, mas o melhor ataque, todos sabem, é aquele que utiliza as próprias forças do alvo, o que ele tem de mais inflamável. E o mais inflamável, nesse caso, é tornar o livro um antilivro. Dizer o contrário do que se espera que um livro diga. Destruir o livro como fetiche, com uma violência tal que se faça perceber que o próprio “conhecimento” é uma farsa. Quando evidenciamos essa farsa, a coisa acaba soando mais como brincadeira. E a brincadeira é justamente o espaço em que os “brinquedos” podem ser destruídos em prol da própria brincadeira. É somente aí, na frequência do lúdico, que o conhecimento pode começar a tornar-se libertário.”
As proposições de Marcio-André merecem reflexão. As respostas estudadas, centradas e um tanto polêmicas dão conta de um intelectual combativo, que conhece verdadeiramente os problemas de se assumir desta forma, sem o consentimento da nobreza dos que detém nesse país a permissão para o pensamento.
Se não se pode concordar com todo o teor da entrevista, pode-se ao menos concordar que é inquietante, que move-nos para um outro sentido na captura do espaço urbano e por conseguinte o território cultural, com a reflexão inevitável: por que há tantas barreiras a serem transpostas nessa cidade?
Fonte:http://www.forumlitbras.letras.ufrj.br/entrevistamarcioandre.pdf?total=412115&carregando=410436&porcentagem=99
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