Meu Pai

Meu pai era um leitor razoável. Tinha a bíblia como livro de cabeceira, estudava horas a fio as cartas, não em busca do sentido religioso dos relatos, mas, das próprias contradições do texto que ele considerava inúmeras e risíveis, porque se tomadas por um leitor menos displicente seriam motivos para alguma desconfiança sobre o caráter “divino” do livro.


Em contrapartida, meu avô, testemunha de Jeová, professava outra interpretação das epistolas como ele mesmo preferia chamar o relato; não concebia que a palavra “carta” estivesse a altura da mensagem contida naqueles textos, e, segundo suas palavras “Deus não usaria um expediente tão ordinário para classificar a sua mensagem”. Meu avô tinha uma extrema preocupação com o destinatário das tais cartas. Abominava meu pai – porque ele era judeu, isto é um detalhe pouco sabido sobre minha família.


Então quando ambos se encontravam, estava aberta a sessão de debates acalorados. A figura mais atacada por meu pai era Moisés – mesmo que isso representasse uma blasfêmia, porque toda vez advertido por minha avó que não se deveria tocar na figura do patriarca.


Uma coisa: o meu avô era da parte materna. Minha avó da parte paterna. Minha mãe é uma mulher negra. A quizumba formada por divergências que se não tinham apelos raciais – a tal mistura – era apimentada por questões religiosas – os ataques que meu pai dirigia contra o patriarca. Era cômico quando ele, subindo nas costas do sofá de casa, interpretava Moisés sobre o monte, vislumbrando a terra prometida. Pedia para meu irmão mais velho imitar a voz de Deus, e, incitando o ódio em meu avô materno, desfiava a sentença que proibia a entrada do patriarca, a acusação de prevaricação pesava como bigorna nos ouvidos de meu avô, ele achava tudo aquilo um despautério. E se preparava sempre para se retirar, quando era impedido por nós.


Meu pai dava boas risadas. E desfiava o rosário das filhas de Lot; Noé dançando nu; Davi com um certo amor afrescalhado por Jonatas; o almoço cheirando na cozinha, aumentando o apetite, cada vez mais o prazer de ver meu pai – um homem minúsculo cabriolando, contando a moda dele as parábolas, metia na gente a vontade de representar com ele a fieira de desatinos que tinha sido o curso humano sobre a terra. Isso sob os olhos vigilantes do meu avô – um negro forte e de mãos poderosas – que não entendia como a filha poderia ter se interessado por aquele homem herege.


Minha mãe ria a solta. Não se intimidava com os olhares de nenhuns de nós, e, quando percebia que o clima iria pegar fogo, arrumava sempre uma tarefa em que se sentia desajeitada para fazer, apartando a briga e esfriando os ânimos.


Meu avô era um homem contraditório. Porque a índole religiosa não escondia o hedonista. Tinha prazer em se fartar de carne. Não desviava os olhos de um bom rabo de nega quando este cruzava o portão lá de casa. Meu pai caçoava sobre a força do Pau de Velho, elixir que um pajé mandara meu avô tomar na juventude, mantendo-o até o final de seus dias, um pequeno cálice para restaurar as forças anímicas, ele dizia.


Meu pai não podendo se desviar do serviço militar, porque o regimento em que havia se alistado já sabia das tramóias dos judeuzinhos para não prestar serviço a pátria. Depois de tê-los acolhido, ressaltava o sargento, ainda se negam a dedicar parte de sua juventude aos seus benfeitores. Isso era um ultraje, e, não me venha com essa conversa de arrimo de família e o escambau, porque comigo não cola, bradava o sargento diante da cara do meu pai, que tremia como vara verde por não saber como seria tratado na caserna. Isto tinha sido um golpe, palavras de mãe do meu pai. Atrapalhará sua vida toda, lamentava como se estivesse perdendo o filho para a morte. Meu pai não se alarmou mais, porque já estava perdido, resolveu tirar proveito desse período, sem maiores aporrinhações. Então, a mãe de meu pai o advertia sobre as tentações que não se deixasse levar, que resistisse, que se procurasse mulher procurasse as de sua terra, que faziam janela ali pela Leopoldina. Era uma mulher pragmática, meu pai me contava. A desgraça foi quando ele conheceu minha mãe, aquele dia ele me segredou:”pensei que sua avó iria enfartar”.

Minha avó levantou as mãos para os céus, bradando que estava desgraçada, o que, bradava o nome de Deus, por que comigo; e, no ato de extrema loucura, citava o nome das sirigaitas de comunidade que tinham interesse no rapagão que era ele, o meu pai. Enumerava as vantagens dos casamentos, punha meu pai perdido em suas lamentações, que iria desconhecê-lo, ah, se não iria. Piche, uma boneca de piche, tresloucada, desarrazoada, atirava as palavras como se fossem pedras para cima de ambos, meu pai e minha mãe.

Com o tempo começou a aceitar a decisão de meu pai. Relutava em apresenta-la como esposa do seu filho, porque era uma heresia – usava esse termo leve para não machucar minha inocência, me alertou meu pai quando escutei da boca de minha própria avó suas desconfianças e malquereres. Não use esse nome, ouviu meu netinho, procure o sobrenome de seu pai, este sim pode lhe servir alguma dia, oxalá chegue logo esse dia. Minha avó admirava minha inteligência, fazia questão de comprar meus livros, me escovar os cabelos para ir a escola, lamentava que pela atitude de meu pai sofreria as conseqüências de um educação deficitária por não ter a permissão de me matricular no colégio devido, pontuava.

E teu pai continua zombador do patriarca? Depois de misturado não se sabe o que lhe ficou do original, pena. Nunca respondi que preferia meu pai assim, diferente dos meus outros tios, ortodoxos. Estes poucos riam e não tinham a alegria que meu pai havia encontrado. Mesmo sendo um ingrato como um de meus tios costumava chamá-lo, depreciando-o na frente de outros seus iguais, me orgulhava do meu pai com sua irreverência e iconoclastia.

Ainda o vejo. Gritando para o meu avô materno :”Nada pode ficar de pé!Derrubemos os moinhos de vento antes que se tornem gigantes!”. Investia contra a parede montado no cabo de vassoura, com elmo confeccionado por um balde.

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