Alcir Henrique da Costa - Carinho e Admiração

Esta semana tive o convite para publicar em uma antologia e soube que nela estaria incluído o autor entrevistado por mim na época do lançamento de seu livro Contramão.
Então divido com vocês - tanto minha admiração quanto as palavras deste grande autor. E, de lambuja, um conto deste meu amigo.


Vestibular

O devorador de calendários

Alcir Henrique da Costa


Mãe cutuca, Aderbal pula da cama. Tonto, não sabe onde está. O corpo lhe dói, cada osso. Mas Aderbal sabe que tem que estudar, e para estudar tem que trabalhar com as duas bacias: a de alumínio e a do corpo, que se encaixam como obra de deus. O sol forte queima as areias dos desertos e deixa alvas, tinindo, as roupas dos clientes. Sem Aderbal, é tão difícil cumprir as tarefas... A mãe lamenta, mas não tem saída “Tenho eu mesma que levar e buscar as coisas.” Ele me ajuda tanto que não posso negar a importância, para ele, desse tal de Vestibular. Mas que eu acho bobagem tudo isso, eu acho.

Mulher esmirrada, conversa com ela mesma quando as outras entoam o seu canto. Ali, todos os homens partiram para cidades grandes. Deixaram as mulheres sozinhas com as crianças, seus sonhos e a rotina — E o vestibular? Implacável, cada vez mais perto, é igual ao leviatã que vem chegando e emagrecendo os meses já cada vez menores. Sabe-se, isso sim, que aquele que está na espreita é o devorador de calendários. O que torna o tempo pedaços de tempo, os meses cada vez mais colados aos seguintes. Outubro já é novembro e novembro é final de dezembro. Pobre mãe do Aderbal, vivendo todos os dias a solidão dos seus dias: lava, quara, engoma, passa. Meu Deus, perdão. Não sou Cristo, pai, e até a ele lhe foi dado o direito da dúvida. Me mato? Não!! Por quê?! Porque Aderbal segura sempre a minha mão.

O jovem chegou em casa todo assanhado, Viu coisa boa: O passarinho verde diria o meu pai. “Conheci o Niemeyer, mãe. Entrei sem querer na sala dos professores lá na faculdade. Me mandou sentar. Disse a ele que queria fazer arquitetura. Ele me deu a maior força e me aconselhou a estudar sempre e muito se quisesse ser muito mais que um mestre-de-obras. Amanhã é o dia do tira-teima, volto aqui para dar um abraço no senhor.” Definitivamente, a mãe de Aderbal não sabia que raio de exame era aquele. O garoto explicou: “Mãe, tem gente pra burro querendo entrar na universidade e poucas vagas, daí que eles fazem um concurso para ver quem sabe mais. Esse concurso se chama vestibular.”

Hoje, Aderbal vai para a última prova. Passou a noite acordado, roeu todas as unhas, cochilou quando não podia sequer fechar os olhos Saiu de casa ventando. O tiquetaque do relógio não parava. O que parou foi o ônibus, na região de Cruzes. O chofer disse que era “coisa do giglê, dentro do carburador.” O ônibus seguiu viagem quando já eram 6h47. O Ford do ano de 52 vai lentamente. Sem dinheiro, o menino tinha que suportar aquele desgraçado de ônibus. Uma coisa era o mais provável (está difícil dar tempo), outra, era apostar no negativo (‘É matematicamente impossível dar tempo’). Aderbal preferiu largar o ônibus e tomar um táxi. Manda o chofer correr o máximo.

A mãe de Aderbal — o garoto se lembra — fez o que pôde: passou o café às pressas, deu a ele um pão duro para roer no caminho, e, em cinco minutos o filho já arrastava a mochila que o desequilibrava ao sobrar e a faltar peso nos ombros. Isso o fez lembrar de quando estudou Momento em Descritiva. Está em cima da hora. Claro que não vai dar tempo. E logo Aderbal que foi um dos primeiros a se inscrever (cadeira 4, sala 16, 0006). Não adiantou nada. Meu deus que desespero. Não! Que ódio, senhor! Pedi ajuda ao céu e até ao leviatã. Rezei para todos os santos. Bastava uma ordem sua — chorava. Esperei o tempo todo. Bastava uma ordem divina para que os relógios parassem.

Em frente à universidade um homem arrasta um pesado portão de ferro. O garoto abre a porta do táxi, larga a mochila e dispara em uma olímpica carreira. A prova começou às 7h e são 7h3min. O motorista grita pelo seu dinheiro. O taxista agarra o garoto dá-lhe socos na cara e pelo corpo todo. Aderbal se desvencilha e sai atropelando os familiares aglomerados na espera dos candidatos que daqui a algum tempo estarão saindo. O reitor veio ver que confusão era aquela. Aderbal pediu para falar. Disse que morava longe, muito longe, que o ônibus quebrou no caminho, disse ainda que sem dinheiro pegou um táxi. Por isso o homem me bateu muito”. O reitor disse que lei é lei e assunto encerrado. “Se eu abrir uma exceção para você tenho que abrir para todos.” “Meu caso é diferente seu reitor, ainda não saiu ninguém lá de dentro então não tem problema algum.” “É como eu disse: lei é lei e assunto encerrado.” Aderbal tem ódio de todo mundo, quer que todos se fodam. Grita para ofender: reitor filho da puta, guardinha de merda. Ele pula o portão. O reitor não deixa, empurra o garoto de volta. Aderbal tem certeza: tudo perdido por quatro minutos.

Aos prantos, o garoto pede perdão a santa Teresinha, sua santa. Jura para ela que há meses não peca. Está mais puro do que muitos santos. Todos os domingos estou na igreja recebendo aulas de órgão. Mesmo assim, senhor, por quatro minutos estou reprovado. Não é justo. Ou então, por questão de justiça, é correto, senhor, apelar para todas as forças. Caminhou na direção do segurança e desafiou: duvido que você atire, guardinha de merda. Disse e, como um felino, jogou-se contra o guarda. Os dois lutaram pela arma. Ouviu-se um tiro. Correria. Pedidos aos céus e ao leviatã. Dos primeiros nada veio. Do rei das águas, do cara de crocodilo, do dominador do tempo, do meio demônio, do leviatã, daí veio — o tiro que matou alguém. Da prova que foi ou não feita. Do curso que aconteceu ou não. Naquela região pobre as coisas simplesmente acontecem. E aconteceu a história de um arquiteto que, ainda criança, matou um guarda com ajuda do leviatã. Dizem que o mundo ficou assim, não por causa do maldito, mas dos homens que aqui reinaram.

* * *




UM AUTOR NA CONTRAMÃO

Paralelos entrevista Alcir Henrique da Costa

Com 65 anos e muita história para contar, apesar das limitações hoje impostas pelo mal de Parkinson, o escritor e sociólogo Alcir Henrique da Costa finaliza seu mais novo livro de contos, Contramão, que levou aproximadamente 10 anos para ser concluído.

Discípulo de Houaiss, o filólogo, não o Dicionário, e sempre engajado (suas convicções políticas levaram-no duas vezes ao cárcere e por sete anos ao exílio), ele está inserido naquele lado do mercado editorial brasileiro que não privilegia subprodutos literários, mas os verdadeiros escritores, que têm de desenhar um caminho todo particular para manterem menos maculada sua trajetória, que se quer honesta e sem favores. Contramão será publicado pela Editora da Palavra regida sob os cuidados de Helena Ortiz. O lançamento acontecerá no próximo dia 3 de outubro, no Palácio do Catete às 18h30.

Para antecipar um pouquinho do que virá, resolvi postar aqui um pequeno bate-papo com esse escritor por quem tenho admiração e respeito por ser um criador consciente e um homem que luta para se manter de pé apesar dos constantes ataques que o homem e a cultura têm sofrido nas últimas décadas no Brasil. Com os Senhores, Alcir Henrique da Costa.

Como você avalia a cena literária brasileira contemporânea? O que você acredita que ela tem de paralela ao boom dos anos 70, em que surgiram vários e diferentes escritores?

A efervescência dos anos 1970 não foi fenômeno típico brasileiro, mas foi uma época em que a experimentação da linguagem — quer na literatura, na música, na política — foi muito mais além do "É proibido proibir". O recrudescimento da ditadura resultou em temas mais metafóricos mas a crueza das imagens não deixava dúvida que aquela era a cara do desencanto, do sonho sendo desconstruído no dia-a-dia.

Hoje, gosto muito dessa mistura fantástica de literatura, música, cinema, DVD e outras mídias É a dessacralização da palavra. No entanto, sou autor de perseguir meses a fio uma única palavra. Não foi a toa que levei dez anos para publicar essa Contramão.

Você na década de 60,escreveu um romance político, Barão de Mesquita 425 - Fábrica do Medo, participou de forma engajada às mudanças políticas do país, e sofreu exílio devido à intensa participação nesse período. Como você avalia hoje a crise brasileira e de que maneira o romance político foi importante para as pessoas da época compreenderem o estado de exceção que existia no país?

O Barão de Mesquita começou a ser escrito em Buenos Aires, onde morei por sete longos anos. Como não tinha passaporte, não pude sair da América Latina. Saí do Brasil na barra pesadíssima e depois de ter sofrido a segunda prisão: foram 12 dias na geladeira e a quase certeza da morte todos os dias. Uma semana depois eu já tinha atravessado a fronteira. O livro tem esse tom: o fantasma do medo e ainda sem usufruir as delícias da volta. Penso que dei um perfil ficcional, juntei personagens porque a dor ainda era muito grande.

Acho que não conseguiria falar em primeira pessoa. Sem dúvida, essa literatura-depoimento, como foram a do Gabeira, Álvaro Caldas e Alfredo Sirkis, entre outros, até por terem uma linguagem quase jornalística, substituiu os livros de história que toda uma geração não teve. Nas escolas e universidades o Brasil tinha parado no tempo. Claro que ajudou muito.

No livro a ser lançado, Contramão predomina a ficção, enquanto que no romance anteriormente citado parece ter existido uma mescla entre ficção e realidade. Como esses elementos se cruzam no seu texto? Como você os dosa?

Como já disse, o Barão de Mesquita é um depoimento romanceado das minhas prisões e do tempo da clandestinidade. No Contramão, há personagens que eu não conheci mas de quem ouvi falar (a Dona Letícia de A Velha e a Outra), há desafios de criação como o que aconteceu com o próprio Contramão, que era, a princípio, um conto sobre a solidão de um grupo de amigos que trabalhou junto por mais de vinte anos e que aos poucos se esvai. Quando a Lena leu, ela disse: "Muito careta. Essas pessoas são muito lamurientas. Por que você não dá uma enlouquecida no Monteiro?" Fui dormir pensando na personagem e assim surgiu a história do cara que pela primeira vez, com mais de 60 anos, encara um travesti de pertinho. Já no Ritmo dos Segundos, aquela personagem da menina estatelada no chão me acompanhou meses até eu descobrir a história dela.

E como você decide a abordagem lingüística do universo a ser narrado?

Quanto à língua, gosto da norma culta. Tive a sorte de ter trabalhado anos a fio com um grande mestre, o filólogo Antônio Houaiss. Aprendi com ele a amar os dicionários e a apreciar a precisão. Digladio-me com frases, palavras, elas me perseguem, fogem, até que,um dia, espontaneamente, elas se me oferecem. Talvez seja por isso que eu produza tão lentamente. Sou inteiramente subjugado por elas. No entanto, uso-as todas, sem preconceitos.

Qual sua relação com os autores contemporâneos? Quais os autores que fizeram sua cabeça? E qual a mensagem que você deixaria para os iniciantes nesse ofício?

Hoje, o mal de Parkinson já não me deixa ler. Infelizmente. Por isso me considero mal informado. Mas acompanho os lançamentos, os contistas premiados (Raduan Nassar), peço que releiam e releiam para mim os da vida inteira: Rosa, Fonseca, Caio Fernando Abreu e muitos outros. Hoje, aos 65 anos, também me sinto um iniciante. Não saberia o que dizer. Só sei que me entrego com a cara e a coragem. Espero que os contos de Contramão possam, além do riso — sim, tenho dois ou três contos que são para rir — possam despertar alguma emoção.

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