(Quase) Teatro
Ressurreição
I
(No meio da sala está
uma cama, sobre ela está um homem bem vestido, barbeado, com ar
respeitável, de sapatos lustrosos, com as mãos cruzadas sobre o
peito. As pás do ventilador rodam lentamente, à esquerda uma cômoda
com uma jarra de água e uma cesta com alguns pãezinhos, uma garrafa
térmica de café, com um monte copinhos descartáveis empilhados e
um pequeno pote de açúcar; um pequeno frigobar, com dois ou três
cascos de cerveja sobre ele; na parede um relógio de ponto
estilizado, desenhado a carvão)
MARTA – É uma
desgraça! O meu irmão!
MARIA – O nosso
irmão! Como? Como?
DESCONHECIDO – Eu
lamento muito, meus pêsames.
MARIA – Como você
pode lamentar? Como? Todos os dias, sempre no mesmo horário, ele se
levantava. Barbeava-se. Asseava-se, para em seguida vestir-se com o
seu melhor terno, bebericava o café, comia pão dormido e se enfiava
na condução cheia para ir à firma. Era um dos primeiros, um dos
primeiros a chegar, organizava todo o serviço e depois...
(Maria cobre o rosto com
as mãos e grita)
MARTA – Depois
colocava em dia toda à sua papelada, alinhava os contatos, punha em
dia a agenda telefônica e às dez horas ficava com o aparelho colado
à boca e ao ouvido, ligando para as pessoas, oferecendo os serviços
da firma.
Imita o irmão morto
Sr. (...) Bom dia (...)
Aqui é da (...) Isto somos líderes de mercado (...) Pode contar
conosco, nossos serviços são os melhores (...) Atendemos em todo a
região (...)
Debocha
Mortos ou não, iremos
(...) Um bom negócio não espera, não é mesmo?
DESCONHECIDO – A
firma não é culpada por ele estar morto. E logo hoje que ele
fecharia um contrato bastante rentável para nós. É um azar, quer
dizer, (pigarreia) uma fatalidade. Não orientamos nossos
funcionários para se matarem de trabalhar, ou para que abdiquem de
suas vidas para servir-nos com todas as suas forças. A única coisa
que exigimos é (escandindo as sílabas) com –pro –me –ti
–men - to. Isso não se pode negar ao falecido. Deus o tenha.
(Marta toma um cafezinho
no que é imitada pelo Desconhecido)
MARIA
– É mentira, mentira! Você não era o supervisor dele? Não era?
DESCONHECIDO
(acuado) – Sim, eu era, mas nunca fui desumano, nunca exigi
dele mais do que ele poderia fazer – dezesseis ou dezessete horas
por dia de trabalho não matam ninguém (ironiza).
MARTA – Você é
um porco! Um porco!
MARIA – Dezesseis
ou dezessete horas de trabalho não matam ninguém? Veja e me diga:
esse homem está ou não morto?
(Maria põe a mão na
testa do irmão morto)
Está ou não frio? Ponha
aqui a sua mão e sinta. Você trabalha dezesseis ou dezessete horas
por dia? Trabalha?
DESCONHECIDO –
Não, não trabalho... Mas um dia trabalhei, não tenha dúvidas. Dei
um duro desgraçado e venci. E seu irmão estava no caminho certo,
seria um vencedor, mais cedo ou mais tarde. Pensávamos em promovê-lo
devido aos seus esforços, aumentar-lhe o salário e lhe dar uma
pequena participação nos lucros. E somos colhidos de surpresa pela
notícia do falecimento. O que é uma pena, quando concordávamos em
lhe conceder algum tempo para o cultivo do espírito...
MARTA – Cultivo do
espírito? Numa condução lotada? Recebendo uma mixaria de
salário... Mal as contas eram pagas e o dinheiro se escafedia. Como
se pode ilustrar o espírito quando com o que se ganha mal se pode
comer?
DESCONHECIDO
(cínico) – Isto não é um problema meu, é de
administração pessoal do morto. Muitas famílias vivem com um
salário mínimo que muito menos do que ele percebia como soldo e são
bastante felizes.
MARIA – É um
cínico! Um canalha!
MARTA – Você pode
ir embora, pode sair de nossa casa. Não há nada mais para você
aqui, nada. Já constatou com os seus próprios olhos que ele está
morto e não foi ao trabalho porque já não pode mais ficar de pé.
MARIA – É
verdade, você pode ir embora, pode ir agora. Não há mais nada para
você aqui.
DESCONHECIDO – É
verdade, não há mais nada aqui para ser feito. Ele está morto. Só
preciso do óbito dele para anexar à ficha da firma e o caso estará
encerrado.
(Marta abre a gaveta da
cômoda e retira de lá uma folha de papel que passa ao Desconhecido)
MARTA
– Aqui está. Faça bom proveito e retire-se, por favor.
MARIA
– Retire-se, imediatamente.
DESCONHECIDO
– Com prazer.
(O Desconhecido sai de
cena com sua pasta embaixo do braço)
II
(A campainha toca. Marta
vai à porta para atendê-la. Surge um amigo da família alto, magro,
barbudo, vestido com roupas largas e de mochila)
JESUS
– É verdade?
MARIA
– É verdade, Jesus... Ele está morto.
MARTA
– Morto, morto, morto...
JESUS
– Não se desespere.
MARTA
– Como não desesperar-se? Quem cuidará de nós? Quem?
MARIA
– Quem? Ele era o nosso amparo.
MARTA
– Ele não move um músculo. E morreu pronto para ir trabalhar.
MARIA
– Tão bonito, tão bonito...
(Maria passa a mão no
rosto do morto)
JESUS
– Verdade. Nunca vi um morto tão elegante.
MARIA
– Está lindo, não está?
MARTA
– Se vivo, com esta aparência, arrumaria logo casamento...
JESUS
– Logo estariam na porta de vocês centenas de moças apaixonadas.
MARIA
– É verdade! Todas atiradas aos pés dele, suplicando por um
olhar.
MARTA
– Implorando por um beijo.
JESUS
– O supervisor da firma esteve aqui?
MARIA
– Sim, ( com desprezo)aquele porco.
MARTA
– Veio apenas para constatá-lo morto.
JESUS
– E mais nada?
MARTA
– Mais nada.
MARIA – Levou o
atestado de óbito com ele. Quis certificar-se de que não era
fingimento ou corpo mole de meu querido irmãozinho...
MARTA
– Aquele homem é um porco.
JESUS
(enfarado) – Não é mole.
MARIA
– E você, Jesus, como tem se virado?
JESUS
– Depois da demissão da firma, vivo de bicos.
MARTA
– É um modo de dedicar-se ao espírito, não é mesmo?
JESUS
– Segundo eles, sim. Agora posso observar melhor a natureza.
MARIA
(ácida) – Por culpa deles, você virou um fiscal dela, não
é?
MARTA
(repreende)– Que é isso, mana?
JESUS
– Marta, obrigado por sua defesa; mas, é a pura verdade.
MARIA
– Você estava devendo um dinheiro ao meu irmão, não estava?
JESUS
– Um pouco.
MARIA
– Pretende pagar quando?
JESUS
– Em breve...
MARTA
– Não é hora e nem lugar para se discutir dívidas.
MARIA
– E como sobreviveremos?
MARTA
– Não é hora. É um desrespeito.
JESUS
– Concordo com Marta. Falemos disso depois.
MARIA
– Não pense que a dívida cairá no esquecimento.
JESUS
– Não penso e não quero. Dever dinheiro a morto deve dar um azar
danado.
MARTA
– Não fale bobagens, você não deve nada a ninguém.
MARIA
– Lesada, é claro que ele deve. E é bom que não se esqueça.
MARTA
– Você é uma cascavel.
JESUS
– Calma, pagarei as minhas dívidas.
MARTA
– Quer um cafezinho?
JESUS
– Não, prefiro uma cervejinha.
(Jesus abre o frigobar e
retira uma cerveja)
MARTA
– Preciso ir à funerária para acertar o transporte do corpo.
MARIA
– Até agora ninguém de lá telefonou.
MARTA
– Jesus, pode ficar com ele por uns instantes?
MARIA
– Não pense que isso me amolecerá quanto ao dinheiro que você me
deve.
JESUS
– Não esquenta. Podem ir as duas. Tomo conta do morto. Ele não
vai a lugar nenhum.
MARTA
E MARIA ( em uníssono) – Obrigada.
(As duas saem)
III
JESUS
(tomando cerveja) – Puta merda, você tá morto mesmo.
FALECIDO
– Silêncio, por favor. É um velório.
JESUS
(espantado cuspe fora o que bebe) – Putz! O morto falou...É
um milagre!
FALECIDO
– Milagre, porra nenhuma. Cadê a minha grana?
JESUS
(nervoso retira a carteira do bolso da calça jeans) – E
tudo o que tenho. Leve com você, pague ao barqueiro e se faltar diz
que paga depois.
FALECIDO
– Merda nenhuma. Eu quero toda a quantia...
JESUS
– Você veio do além só para me cobrar a grana ( retira
dinheiro da meia) Tá aqui, porra, leva.
FALECIDO
– Muito obrigado. (senta-se na cama)
JESUS
(apavorado) – Você tá de sacanagem, não?
FALECIDO
– Ressuscitei, oras.
JESUS
– Só para me deixar liso.
FALECIDO
– Nada disso... Se você pagasse à minha irmã o que me deve os
bingos iriam ficar mais ricos e eu mais pobre...
JESUS
– E agora o que você vai fazer?
FALECIDO
– Vou cair fora antes que elas voltem.
JESUS
– Depois do trabalhão das duas... É putaria, mermão.
FALECIDO – O
supervisor já me deu como morto, portanto, hoje não bato ponto. O
dia lá fora está bonito pra burro, você acha que vou dar sopa para
a morte, logo hoje? E vou tratar de tirar essa roupa é muito quente.
Vamos pegar uma prainha?
JESUS – Por que
não? Vamos nessa.
( O Falecido sai para
trocar-se e as duas irmãs voltam da funerária)
IV
(Marta e Maria olham
abismadas para a cama)
MARTA
E MARIA – Cadê o morto?
JESUS
– Ele foi trocar-se. Deu um troço nele de aproveitar o dia, quer
ir à praia. Deve ser o tal do último desejo.
MARIA
– Você andou se embebedando demais, rapaz.
MARTA
– Isso não é verdade, Jesus. Não é?
(As duas esticam os ouvidos
na direção do banheiro)
MARIA
– Quem está no banheiro?
JESUS
– É ele trocando a roupa.
MARTA
– Será possível?
(O Falecido irrompe na
sala com um modelito verão)
FALECIDO – Minhas
queridas irmãs! (beija a cada uma) Não tenho tempo a perder, o sol
está ótimo e a praia não pode esperar. Não se nega a um morto seu
último pedido, não é? Depois, juro que volto a ser o mortinho
querido de vocês, deitadinho ali na cama.
MARTA – Como você
vai à praia? Não tem dinheiro...
MARIA – É
verdade.
FALECIDO – Isto
não é problema. Jesus me pagou o que deve. Está absolvido da
dívida.
JESUS – Amém.
MARIA – Você
estava morto agora mesmo. E era um morto tão bonito.
MARTA (amuada)–
Dá pena você ressuscitado.
MARIA – Vai
estragar a pele no sol. E é capaz de voltar com micose.
MARTA – Você, meu
bem, não se descuide. Nade próximo à praia. E, se quiser, não
precisa morrer de novo.
MARIA – Não
precisa? É claro que precisa. Como vamos explicar isso? Se esbarrar
com algum conhecido, finja que é outra pessoa. Diga que é um sósia,
que é coincidência, mas se perguntarem por seu nome, você faz um
ar distraído e diga não foi ele quem morreu essa manhã.
MARTA – Deixe de
bobagem.
JESUS – Cara,
vambora?
FALECIDO – Vamos.
(Os dois saem)
V
MARTA
– Euprefiro ele assim, vivinho...
MARIA
– Eu , morto.
MARTA
– Quem sabe se ele não arruma um casamento e esquece de vez esse
negócio de morte.
MARIA
– Casamento? Ninguém quer um morto para marido.
MARTA
– Só vão saber se a gente contar. Pode ser bom para a casa.
MARIA
– Você pode ter razão.
MARTA
– Uma esposa, filhos...Ele merece.
MARIA
– É, merece, pensando bem, merece mesmo.
MARTA
– Você ainda tem aquela agenda com o nome das pretendentes?
MARIA
– Tenho.
MARTA
– Quando ele voltar nós vamos interrogá-lo. Ele nos dirá suas
preferências.
MARIA
– É.
MARTA
– Você não parece animada...
MARIA
– Ele era um morto tão bonito.
MARTA
– Era; isso era. Mas é passado. Ele ressuscitou.
MARIA
– Preferia-o assim: todo enfeitado de flores. Quietinho.
MARTA
– Tinha a sua graça.
MARIA
– Agora, ele deve estar lá, na praia, se esbaldando.
MARTA
– Deve.
MARIA
– É uma desgraça! Uma desgraça!
MARTA
– O nosso irmão, o nosso irmão...
(As luzes se fecham
sobre as personagens no palco)
Escrita em 13/09/2013
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