EXERCÍCIO

SATANIK

João Simões, sentado na poltrona da sala de espera, lia o jornal. Impaciente, consultava o relógio de pulso. O bigodinho fino retorcia-se-lhe na caratonha. Os lábios finos torcidos em palavra impronunciável, não suportava todo o tédio da Eternidade. Avisaram-no de que não seria o único candidato à entrevista; logo chegariam outros dois. A Eternidade tinha o aspecto de consultório clínico: a recepcionista limitava-se a abrir a porta, identificá-lo em ficha e encaminhá-la à saleta em que uma junta médica parecia ocupada na análise de candidato anterior.

A recepcionista não era lá bonita, compensava a falta de beleza com uma caligrafia invejável. Esmerava-se no preenchimento do cadastro, cuja aparência de certidão antiga conferia ao documento uma impressão mais artística e menos burocrática. Fora a caligrafia, abrigava-se em um silêncio de remoção difícil, alterado apenas pela campainha, que a obrigava levantar-se, abrir a porta e recomeçar o pequeno interrogatório aos novos clientes. Toda vez a porta mudava-se conforme o visitante. Nunca era igual. E a campainha soava diferente, combinava com suas características. Intrigante, João Simões pensava, intrigante... A metafísica desconcertava-o tanto que preferia o turfe ou os jogos de azar. Se ao menos tivesse um baralho à mão...

A campainha.

Brás Cubas, perfeitamente, ouviu o desconhecido assinalando, não prestou atenção aos outros dados, porque se prendia à notícia de um cavalo campeão. Reparou a distinção e os modos severos do companheiro; de pincenê, espantava-se com a pule do bicho. Soltava palavrões. Estrondia em gargalhadas constrangedoras ao silêncio da recepcionista, levando embora insipidez do consultório. Trocaram olhares, o risinho explodiu outra vez. João Simões não atinava com o que poderia ser engraçado.

Macaco, vixe, macaco! Foi o que deu! Madame, por favor, os apontadores do bicho ficam em qual esquina? João Simões reparou que a Eternidade não tinha esquinas, era uma Brasília erguida sobre as nuvens. Não há banca de bicho?, vociferou Brás Cubas, como não há? Que diversão é possível, então, por aqui? E você aposta no bicho? Prefiro cavalos, João pontuou. É um bom palpite, rapaz, um bom palpite.

A mocinha é calada, sonsa... só não pode se chamar Marcela . É uma tonta, uma pequena e tonta mocinha. Perdendo-se por aqui. A recepcionista não lhe atendia as provocações, escriturava as fichas com caligrafia invejável. Ela não pode nos ouvir, está em outro universo, explodiu Brás Cubas. Chamo-me Brás Cubas, meu amigo. E você? João Simões respondeu, dobrando o jornal e virando-se para o desconhecido. Somos os dois? Eu e você apenas para lidar com os brutos? Estatísticas, estatísticas é só o que cobram de nós.

Outra vez a sineta.

Olivier Becaille, soletrarei e escandiu as sílabas todas com imensa mesura. A recepcionista tratou de assestá-lo à ficha juntamente aos outros dados cadastrais. Prazer, senhores, fico feliz pela companhia. João Simões assumiu o posto de mestre de cerimônias, explicou que nenhum deles sabia exatamente o que era a Eternidade; descobriram que o sarro era proibido. Mulher só haviam visto aquela: o tribufu de elegância caligráfica. Olivier, simpático, instaurou um clima de confiança, instalando-se na troça, informando-se sobre carteado ou casa de apostas ou randevu. Não, não tem randevu, casa de apostas ou carteado, Brás Cubas esclareceu, contrariado.

Nem jóquei, João Simões somou. É uma merda a Eternidade, Olivier soltou o verbo desagradado. A recepcionista, talvez comovida por ver um jovem bonito como era o latagão, saiu do mutismo e com meneios vocais, pudicícia e langor, obtemperou: Sempre há com que se divertir para um rapaz, enfatizou, excluindo a boa idade de Brás Cubas e João Simões. Sem meus novos amigos, não me interessa diversão; o corporativismo do gajo comoveu aos dois que lhe abraçaram com lágrimas. Todos sobrevivemos, com certeza, sem carteado ou turfe, mas sem mulher é impossível, soou em uníssono o veredito.

Minha Cibele, fale-me com todas as letras, sem omitir uma única, onde se pode fornicar,copular, entrar em conjunção carnal com criatura do belo sexo? João Simões reconheceu o estadista em Brás Cubas após a pergunta e o estrategista, em seguida: Cibele se não nos incluir em seus banquetes, não poderemos imolar no altar bacante das ninfas o belo latagão Olivier. João Simões não ligava ao relógio ou a entrevista ou a qualquer outra coisa, o bigodinho fino espetado de curiosidade, os lábios finos em prodígios, profetizava prazeres comuns mas sem os quais toda vida é menos atraente.

A Eternidade, enfim, tinha lá um charme. Não era truque de prestidigitador de matinê, nem globo de vidro com neve vendido a turista. A porta do consultório abriu-se e um par de olhos reprovadores cravou-se em todos como um punhal; retire-se a frase por banalidade descritiva, ordenou, sem medo, o contista que já não mandava merda nenhuma, não tinha asseclas ou instrumento coercitivo para forçá-los ao bom gosto estilístico. As três personagens não suportando a desaprovação do contista, resolveram o diálogo em libras. Olivier Becaille advertiu de que em francês há particularidades e peculiaridades. João Simões propôs votação. O contista perdeu por três a zero, vexaminosamente.

Cibele, voltemos à nossa conversa, esclareça-nos, por favor. As sacerdotisas do amor precisam de um outro nome para atuarem livres nesse campo sem que a identidade verdadeira possa feri-la, etc...Daqui por diante será Cibele para o nosso seleto grupo. Cibele... Alguém tem algo contra o nome? Nenhuma objeção, nenhuma. João Simões, homófono, elencava palavras em “ão”; terminou por preferir injeção por ser a mais sútil e não sutil, com as ideias que lhe passavam pela cabeça.

A recepcionista mostrava-se uma expert em sacanagem, deliciava-os com as descrições das festividades clandestinas, às barbas – longas, longas – da autoridade maior, que se era onisciente fazia vista grossa para a xereca satanik do Céu. Nunca permitimos a intromissão de homens, revelou Cibele, nunca. Abriremos exceção dessa vez. Como se resolviam, coitadinhas? João Simões perguntou-se; Brás Cubas recorria às leguminosas e sua imaginação incendiava-se e Olivier Becaille desmontava com nojinho da descrição da solução sáfica.



 O mocassin é scarpin, é?, provocou Brás Cubas; Essa Coca é Fanta, João desmunhecou. Não falem assim do menino, embeiçou Cibele. À João Simões a Eternidade não lhe parecia mais tediosa, embora o preocupasse o setor para qual seria designado. Cibele silenciara; um homem de avental branco transpôs a saleta, apontou para que os três o seguissem. Aviso, senhores, talvez não fiquem juntos no quadrante da Eternidade, a voz sumia; Brás Cubas, Olivier Becaille e João Simões ensaiaram gestos que não davam por encerrado o assunto com Cibele que piscava um dos olhos e riscava nervosamente com a unha a coxa opalescente sem nada de angelical.

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