Mora na Filosofia*



Atrás da Central do Brasil há um pequeno comércio informal cada vez mais reprimido pelos agentes da prefeitura. É lá o meu o ponto de encontro com um representante da Associação de Moradores do Morro da Providência. Do Restaurante Popular seguimos a pé rumo à subida do Morro. Mais alguns passos, o Morro da Providência se revela, primeira favela do Brasil, formada pelos soldados vitoriosos de Canudos, que ali acamparam para exigir ao Ministério do Exército um pagamento que nunca chegou. Além dessa referência histórica, o Morro se liga a figura do escritor Machado de Assis, nascido e criado em suas ladeiras. Meu cicerone prefere o anonimato e em homenagem a ambos, ao escritor e ao meu breve mentor, o denominarei daqui para frente pelo codinome Machado.

Eu tinha que escrever sobre a Providência. E contactei a Associação.

Machado é jovem, aparenta entre vinte e trinta anos, mora na Providência desde que nasceu. É casado e tem dois filhos. Atravessou todos os tumultos causados pela invasão da polícia e pela resistência dos traficantes, acompanhou o luto das mães quando jovens trabalhadores da comunidade foram assassinados por policiais do BOPE em uma operação desastrosa para a pacificação do local antes dos projetos das UPP’s. É um severo crítico das políticas de segurança nas comunidades do Rio de Janeiro, integra a CUFA (Central Única das Favelas) e o PPPOMAR (Partido Popular para a Maioria). Não que essas informações sejam relevantes, mas ajudam na construção do perfil sob o qual fui apresentado a questão.

A lembrança mais forte do meu Machado é a visão que ele possuía da varanda de sua casa. Um camarote privilegiado para a Central do Brasil, Praça Onze, Sambódromo e a Ponte Rio – Niterói. A Praça Onze era especial: o lugar dos circos que alegravam a sua infância quando distribuíam ingressos grátis nas escolas públicas da região. Perguntei se ele gostaria de ser artista de circo, me confessou que chegou a fazer algumas aulas na Escola Nacional, logo ali na Praça da Bandeira. Ia de ouvinte e acabava ficando. Hoje, além de batalhar na Associação, trabalha como faz-tudo em um condomínio distante e para complementar a renda, anima festas infantis com o que aprendeu naquele tempo em que sonhava em integrar uma trupe circense.

Meu celular toca interrompendo o assunto. É Luiza, assistente do Molica, jornal O Dia. Temos que agendar a sessão fotográfica. Trocamos rapidamente algumas palavras e combinamos que o fotógrafo me encontraria em frente a Escola de Música da UFRJ, do outro lado do Centro da cidade, junto a Lapa. Fotografias para a divulgação do meu livro que será lançado em breve.

Chegamos a uma pequena mercearia no alto do Morro. Os pôsteres sobre futebol revelam a paixão do proprietário que torce para Flamengo e não vê com bons olhos a volta de Adriano para a Gávea, arrisca que a carreira do jogador será curta, porque ele não tem cabeça para administrá-la. Ao contrário do que o merceeiro me relata de sua ascensão dentro da comunidade. Machado atesta que o que hoje é uma modesta mercearia, de duas portas, começou como vendinha na garagem de casa. Hoje ele considera-se como um Eike Batista, porque conquistou com o trabalho atrás do balcão a educação dos filhos, dois ou três imóveis e o automóvel zero financiado a perder de vista. Ele coloca a cerveja na camisinha e discretamente se retira, pressentindo que interrompera nossa conversa, mas não sai de cena sem antes referir-se a sacanagem toda, depois da ocupação do morro. De outra mesa, um morador manda na filosofia: “O Progresso não é justo. Progresso é só progresso”. Os relatos de violência não se afastam muito uns dos outros nas favelas e morros ocupados: sai a truculência dos traficantes e entra a violência do Estado.

Enquanto conversamos sobre as ações policiais, aproxima-se o filho mais velho de Machado. É um rapaz com olhos vivos, jeito esperto e não disfarça o motivo da visita – dinheiro. É sexta-feira, Wallace quer levar a namorada ao baile. Vendo os cascos escuros sobre a mesa, certifica-se de que não terá dificuldade em arrumar com o pai uma contribuição generosa para sua felicidade. Não resisto e participo da intera para bancar a saída do Dom Juan. A mulher de Machado não perde tempo e se junta nós. Outra cerveja. É cabeleireira, trabalha em um salão em Ipanema, mas quer largar a profissão, apesar de rentável. E aponta as pernas ressaltadas de varizes. Ela, vaidosa, está juntando recursos para operá-las, enquanto se prepara para a guinada profissional em um curso de cuidadora de idosos.
A descontração esfria quando a discussão se volta para política. As eleições municipais têm gerado debates calorosos dentro da comunidade.

Machado me garante que a consciência política dos moradores aumentou muito e hoje um grande número de pessoas envolvem-se mais diretamente na vida do Morro. Perceberam que precisam tomar conta do que é seu, senão acabarão perdendo, reflete Machado. Sente na pele a dureza de sua própria observação. Sua casa é uma das desapropriadas para a construção do teleférico da Providência.

A mulher de Machado tem que voltar para a casa da mãe, deixou a filha com a avó e não se demora em se despedir. Agradece a minha visita como se significasse muito para eles, pede para que eu volte noutro dia para um almoço e para ser avisada quando da publicação do perfil no jornal. Machado confessa que desde a desapropriação mudou-se para a casa da sogra em caráter provisório. A prefeitura o cadastrou para recebimento do cheque de 400 reais para pagamento do aluguel social. Ele não sabe onde conseguirá alugar uma casa de dois quartos com esse valor.

A casa de Machado, marcada com a sigla SMH, logo será demolida para dar lugar às instalações do teleférico que está sendo instalado no Morro da Providência como já realizado no Complexo do Alemão.. Pagamos a conta e voltamos a andar pelo Morro. O roteiro trata das casas marcadas com a tal sigla e logo estamos na antiga residência de Machado. Alguns vizinhos cismam em permanecer em suas casas, porque não tem para onde ir. O valor do aluguel social não contribui para mudar a situação de angústia e enquanto não reclamam o imóvel para demolição, agüentam-se como podem.

Paulo, fotógrafo do jornal O Dia, me encontra no lugar marcado. Os cumprimentos habituais e aponto para a Banca de Livros e Vinis do Inácio como lugar para as fotografias. Ele me acompanha até ela e não se satisfaz com o que vê. A banca está encurralada entre a obra de restauração do prédio do Automóvel Clube, cercada por caçambas de entulho e o fedor de urina é enjoativo. Muitos dos passantes utilizam-se do local como mictório. A creolina torna suportável o cheiro. Paulo não acha a idéia atraente; o brief indica que a fotografia deverá ser bem carioca.

Machado está calado diante de sua casa que logo será demolida. Percebe-se a tristeza em seus olhos. Criou-se ali, concebeu cada um de seus dois filhos nos cômodos, hoje, repletos de poeira. A casa é um fantasma que assombra o íntimo de Machado. Ele e sua mulher sofrem toda vez que a revisitam; resolveram deixá-la para não caírem em depressão e afetar os filhos. Tentam se acostumar com a idéia de que devem reinventar suas vidas. E com alguma sorte, contam que a Prefeitura pague uma indenização que baste para a compra de outra na casa no Morro.

Retornamos para a pequena mercearia. As mesas estão cheias, o ambiente é alegre, discute-se de tudo. A novela Avenida Brasil em pauta, as maldades da vilã Carminha e o desacerto amoroso entre Nina e Jorginho são a tônica da conversa de das mulheres; os homens preferem discutir sobre a venda milionária do jogador são-paulino Lucas para o PSG e a transação já foi superada pela transferência do atacante Hulk para o futebol árabe.

Machado organizou protestos contra as desapropriações. Recebeu apoio de diversas entidades não governamentais e de figuras públicas como cantores, atrizes e jogadores de futebol. A tristeza que meu cicerone sente dissipa-se aos poucos em contato com aquela gente. É impossível manter-se pessimista ou resistir aos apelos do samba tocado ao fundo com um pandeiro, um cavaco e um tamborim, como reza o samba de Paulinho de Viola. Porém, Machado não aceita o argumento das autoridades. E com razão.

Paulo descobre o lugar para a fotografia bem carioca. Em verdade, são muitos os lugares. Para conseguir apenas uma fotografia deverá bater umas dez ou quinze. Estamos próximos a Central do Brasil. Tiramos algumas fotos no Campo de Santana e pedi outras nos canteiros da Avenida Presidente Vargas. Atrás de mim, como fundo, o Morro da Providência, a placa mostra a presença da UPP com o símbolo do Governo do Rio de Janeiro. Paulo me posiciona para a tal fotografia. Não sou um bom modelo, faço a advertência. Ele parece descobrir algo quando me enquadra com sua máquina fotográfica. Pede para eu não me mover. Exige descontração. Novamente faço o que me é possível. Duas, três, quatro, cinco vezes - aperta o gatilho da câmera. E fica feliz com o resultado. Temos a foto.

Corremos para a sombra. E feliz por ter acertado, Paulo sorri. Peço para ver a fotografia que o entusiasma. Lá estou eu, com o Morro da Providência ao fundo, a pedreira e as casas oblíquas e perpendiculares. Entretanto, no gradeamento da universidade, vejo fixado um galhardete, nele a figura do prefeito que tenta a reeleição. Saio dali pensando em Machado e na fotografia bem carioca que sairá no domingo, com o candidato gargalhando às minhas costas.






* Conto encomendado por Raphael Vidal para antologia do evento FIM. Utilizou-se outra narrativa para o livro intitulada Fora d'água.

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