John Fante Trabalha no Esquimó
Remake que vale a pena:
Durante um período eu me perguntava como poderia reconhecer na rua os meus escritores prediletos, em um jogo de adivinhação, traçava quais características teriam e como se apresentariam aos meus olhos, porque perscrutava os rostos alheios tentando descobrir neles semelhanças com o escritor que desejaria ver naquele momento.
O jogo começou quando consegui o meu primeiro emprego de office-boy no Centro do Rio de Janeiro. Andava pelas ruas,examinando atento cada passante e anotava onde e quando topei com ele e com qual escritor se parecia,e montava um pequeno perfil do transeunte como um retrato 3x4 para manter acesa na minha memória a necessidade desse encontro e o sonho de um dia cruzar, mesmo que com um sósia, com Lima Barreto ou Machado de Assis ou João do Rio ou qualquer outro escritor estimado.
Assim o homem da banca de jornal em frente ao edifício São Borja, na Avenida Rio Branco, se tornou Jamil Snege. O caixa do restaurante Esquimó, onde eu fazia as refeições, transformou-se em John Fante. O velho vendedor de livros que ficava em frente à Escola de Música da UFRJ havia se transmutado em Agripino de Paula. E quanto mais atentamente olhava, descobria semelhanças ainda mais surpreendentes.
Os rostos dos escritores eram conhecidos porque juntava recortes de jornais, dos velhos papéis acumulados na casa paterna, que ficavam junto de uma pilha de revistas antigas e sem valor, quase todos amarelados, antigos cadernos de cultura como o Suplemento do Jornal do Brasil que meu pai guardava sonhando um dia em se tornar Eça de Queiróz, lendo repetidas vezes O Mandarim, A Casa dos Ramires e o Crime do Padre Amaro. Quando aniversariei, isso aos dezessete anos, me presenteou com os contos do autor português. Aia e Civilização me marcaram profundamente. Singularidades de Uma Rapariga Loura também. Talvez dessa ligação profunda com esses textos, tive vontade de conhecer o autor das linhas que um dia tinha lido. Eça de Queiróz estava morto, restando uma fotografia em que aparece de monóculos, dentesprojetados como se tivesse engolido um piano e as teclas estivesses ainda do lado de fora ( tomei emprestado essa expressão que muitos atribuíam a descrição física de Manuel Bandeira, poeta pernambucano). Resolvi então fazer um catálogo de rostos parecidos com meus escritores prediletos, e, criança, as pessoas, pacientemente, aceitavam posar para minha kodak descartável, se deixando fotografar à moda dos escritores que povoavam minha imaginação e que eu julgava tão distantes ou mortos. O capricho ganhava requintes conforme o passar dos anos. Cada vez mais sofisticava a maneira de olhar - afinal o que é a literatura, se não um olhar específico sobre uma fatia da realidade? - e exercitava tudo isso como agora : escrevendo linhas e linhas sobre o que tinha visto, adorando cruzar com os tipos que tinham as semelhanças físicas com os autores e me divertindo quando eles percebiam que estavam sendo assediados.
Hoje, ou melhor, alguns dias atrás, encontrei um homem que atravessava a Avenida Nossa Senhora de Copacabana que era Ernest Hemingway. Caminhei atrás dele lentamente, para não ser percebido, para não despertar nele a sensação de um perseguidor, advertido de que a cidade do Rio de Janeiro é bastante violenta e que as pessoas desconfiam cada vez mais uns dos outros, e eu o segui duas quadras acima, como quem toma a direção do Leme, evitando me denunciar, quando o homem parou em uma banca de jornal e levou os olhos compridos até mim e perguntou à queima - roupa: "Por que você está me seguindo?" e não sabendo disfarçar meu incomodo por estar descoberto, fiz o que achei sensato, disse a verdade "É que o senhor parece com um escritor que admiro, e esse escritor já está morto". Ele coçou a cabeça como quem não acredita nem um pouco na minha história e desfiou "Já sei, com o autor de Paris é uma Festa, não é?" Era inacreditável, ele também se achava parecido com Hemingway. E "Vou contar um segredo", ele me disse, "Vou participar de um concurso de sósias do escritor em Cuba". Depois desta afirmação foi minha vez de desconfiar."Olha só, tenho que ir" e o homem despareceu com seu andar confiante, com uma garantia a mais que se somava ao seu espírito de que poderia ganhar o festival de sósias nesse concurso em Cuba (aliás, Hemingway viveu um bocado de tempo lá, na Ilha).
Descrevi minha maneira peculiar de andar pelas ruas do Rio; minha mulher acredita que um dia terá que me retirar de uma delegacia : a razão é esse meu hábito, inofensivo, mas um tanto assustador para os desavisados.
O espantoso foi o que me aconteceu um dia desses, cruzando o bairro das Laranjeiras, indo em direção a rua General Glicério para buscar minha esposa que tem aula de espanhol naquela região. Seguia a rua das Laranjeiras, lendo Menina a Caminho, de Raduan Nassar, exemplar autografado (morram de inveja!), quando topo com a figura de Moacir C. Lopes caminhando em sentido contrário ao meu. Notei por mero acaso dessa vez, porque estava desligado para essas observações, absorvido pela leitura, e lentamente, com passo forte de quem sabe riscar o chão como quem acende nas palavras uma labareda, vinha o escritor, introspectivo, talvez pensando no novo livro, no futuro lançamento ou nos filhos, na família, na vida que tanto nos dá e também nos tira, com olhar aprisionado atrás daquelas lentes,anteparos para que a realidade não chegue tão forte, e matreira, que faz com que ela pare, fera intimidada, e não se anime logo a devorar aquele que a o contempla, vinha Moacir C. Lopes. E como sei que não era um sósia? Simples, meu coração se descompassou, na hora inventei que o reconheci por causa das inúmeras fotografias de jornais, o que em parte é verdade, mas o que se deu de fato foi isto : senti que o homem que escreveu a Ostra e o Vento vinha em minha direção pela energia emanada do corpo, uma aura que se elevava acima da cabeça encanecida, uma espécie de consagração da Musa Literatura que todos os escritores esperam alcançar e que só poucos logram.
Não me contive. Chamei "Moacir, homem!" como alguém que se descobre noutro, como se a revelação só encontrasse esse caminho. Talvez eu tenha sentido deus ou qualquer coisa que se pareça com uma epifania naquele instante, quieto, diante do mestre, entusiasmado como assim quer a palavra, com esse deus que se agitava dentro de mim, não arrisquei o que queria : abraçá-lo e torná-lo parte da ternura que me invadia por um homem como Moacir existir, diminuindo a atrocidade dessa cidade e dessa existência.
Portanto, eu vi com os olhos da graça esse desenho que só poderá ser explicado pela prodigiosa mente que a tudo criou nesse mundo, se ela existir, se não for um engodo como às vezes suspeito. E se essa consciência não existir, talvez tenha valido toda essa ilusão e todos os mágicos incumbidos em colaborar para que esse efeito perdure nos homens, dando extensão e colorido ao que se vê, profundidade ao que se sente e paixão ao que se quer.
Moacir me fez feliz naquele dia como todos os dias experimento essa simplicidade ao olhar o rosto da minha mulher, ao ver o rosto de minha filha, na investigação incansável que o olhar realiza em tudo para não rodar por aí desvairado.
Durante um período eu me perguntava como poderia reconhecer na rua os meus escritores prediletos, em um jogo de adivinhação, traçava quais características teriam e como se apresentariam aos meus olhos, porque perscrutava os rostos alheios tentando descobrir neles semelhanças com o escritor que desejaria ver naquele momento.
O jogo começou quando consegui o meu primeiro emprego de office-boy no Centro do Rio de Janeiro. Andava pelas ruas,examinando atento cada passante e anotava onde e quando topei com ele e com qual escritor se parecia,e montava um pequeno perfil do transeunte como um retrato 3x4 para manter acesa na minha memória a necessidade desse encontro e o sonho de um dia cruzar, mesmo que com um sósia, com Lima Barreto ou Machado de Assis ou João do Rio ou qualquer outro escritor estimado.
Assim o homem da banca de jornal em frente ao edifício São Borja, na Avenida Rio Branco, se tornou Jamil Snege. O caixa do restaurante Esquimó, onde eu fazia as refeições, transformou-se em John Fante. O velho vendedor de livros que ficava em frente à Escola de Música da UFRJ havia se transmutado em Agripino de Paula. E quanto mais atentamente olhava, descobria semelhanças ainda mais surpreendentes.
Os rostos dos escritores eram conhecidos porque juntava recortes de jornais, dos velhos papéis acumulados na casa paterna, que ficavam junto de uma pilha de revistas antigas e sem valor, quase todos amarelados, antigos cadernos de cultura como o Suplemento do Jornal do Brasil que meu pai guardava sonhando um dia em se tornar Eça de Queiróz, lendo repetidas vezes O Mandarim, A Casa dos Ramires e o Crime do Padre Amaro. Quando aniversariei, isso aos dezessete anos, me presenteou com os contos do autor português. Aia e Civilização me marcaram profundamente. Singularidades de Uma Rapariga Loura também. Talvez dessa ligação profunda com esses textos, tive vontade de conhecer o autor das linhas que um dia tinha lido. Eça de Queiróz estava morto, restando uma fotografia em que aparece de monóculos, dentesprojetados como se tivesse engolido um piano e as teclas estivesses ainda do lado de fora ( tomei emprestado essa expressão que muitos atribuíam a descrição física de Manuel Bandeira, poeta pernambucano). Resolvi então fazer um catálogo de rostos parecidos com meus escritores prediletos, e, criança, as pessoas, pacientemente, aceitavam posar para minha kodak descartável, se deixando fotografar à moda dos escritores que povoavam minha imaginação e que eu julgava tão distantes ou mortos. O capricho ganhava requintes conforme o passar dos anos. Cada vez mais sofisticava a maneira de olhar - afinal o que é a literatura, se não um olhar específico sobre uma fatia da realidade? - e exercitava tudo isso como agora : escrevendo linhas e linhas sobre o que tinha visto, adorando cruzar com os tipos que tinham as semelhanças físicas com os autores e me divertindo quando eles percebiam que estavam sendo assediados.
Hoje, ou melhor, alguns dias atrás, encontrei um homem que atravessava a Avenida Nossa Senhora de Copacabana que era Ernest Hemingway. Caminhei atrás dele lentamente, para não ser percebido, para não despertar nele a sensação de um perseguidor, advertido de que a cidade do Rio de Janeiro é bastante violenta e que as pessoas desconfiam cada vez mais uns dos outros, e eu o segui duas quadras acima, como quem toma a direção do Leme, evitando me denunciar, quando o homem parou em uma banca de jornal e levou os olhos compridos até mim e perguntou à queima - roupa: "Por que você está me seguindo?" e não sabendo disfarçar meu incomodo por estar descoberto, fiz o que achei sensato, disse a verdade "É que o senhor parece com um escritor que admiro, e esse escritor já está morto". Ele coçou a cabeça como quem não acredita nem um pouco na minha história e desfiou "Já sei, com o autor de Paris é uma Festa, não é?" Era inacreditável, ele também se achava parecido com Hemingway. E "Vou contar um segredo", ele me disse, "Vou participar de um concurso de sósias do escritor em Cuba". Depois desta afirmação foi minha vez de desconfiar."Olha só, tenho que ir" e o homem despareceu com seu andar confiante, com uma garantia a mais que se somava ao seu espírito de que poderia ganhar o festival de sósias nesse concurso em Cuba (aliás, Hemingway viveu um bocado de tempo lá, na Ilha).
Descrevi minha maneira peculiar de andar pelas ruas do Rio; minha mulher acredita que um dia terá que me retirar de uma delegacia : a razão é esse meu hábito, inofensivo, mas um tanto assustador para os desavisados.
O espantoso foi o que me aconteceu um dia desses, cruzando o bairro das Laranjeiras, indo em direção a rua General Glicério para buscar minha esposa que tem aula de espanhol naquela região. Seguia a rua das Laranjeiras, lendo Menina a Caminho, de Raduan Nassar, exemplar autografado (morram de inveja!), quando topo com a figura de Moacir C. Lopes caminhando em sentido contrário ao meu. Notei por mero acaso dessa vez, porque estava desligado para essas observações, absorvido pela leitura, e lentamente, com passo forte de quem sabe riscar o chão como quem acende nas palavras uma labareda, vinha o escritor, introspectivo, talvez pensando no novo livro, no futuro lançamento ou nos filhos, na família, na vida que tanto nos dá e também nos tira, com olhar aprisionado atrás daquelas lentes,anteparos para que a realidade não chegue tão forte, e matreira, que faz com que ela pare, fera intimidada, e não se anime logo a devorar aquele que a o contempla, vinha Moacir C. Lopes. E como sei que não era um sósia? Simples, meu coração se descompassou, na hora inventei que o reconheci por causa das inúmeras fotografias de jornais, o que em parte é verdade, mas o que se deu de fato foi isto : senti que o homem que escreveu a Ostra e o Vento vinha em minha direção pela energia emanada do corpo, uma aura que se elevava acima da cabeça encanecida, uma espécie de consagração da Musa Literatura que todos os escritores esperam alcançar e que só poucos logram.
Não me contive. Chamei "Moacir, homem!" como alguém que se descobre noutro, como se a revelação só encontrasse esse caminho. Talvez eu tenha sentido deus ou qualquer coisa que se pareça com uma epifania naquele instante, quieto, diante do mestre, entusiasmado como assim quer a palavra, com esse deus que se agitava dentro de mim, não arrisquei o que queria : abraçá-lo e torná-lo parte da ternura que me invadia por um homem como Moacir existir, diminuindo a atrocidade dessa cidade e dessa existência.
Portanto, eu vi com os olhos da graça esse desenho que só poderá ser explicado pela prodigiosa mente que a tudo criou nesse mundo, se ela existir, se não for um engodo como às vezes suspeito. E se essa consciência não existir, talvez tenha valido toda essa ilusão e todos os mágicos incumbidos em colaborar para que esse efeito perdure nos homens, dando extensão e colorido ao que se vê, profundidade ao que se sente e paixão ao que se quer.
Moacir me fez feliz naquele dia como todos os dias experimento essa simplicidade ao olhar o rosto da minha mulher, ao ver o rosto de minha filha, na investigação incansável que o olhar realiza em tudo para não rodar por aí desvairado.
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