Tropa de Elite

A iluminação da rua é precária. A casa está a duzentos metros. O telhado baixo. A pequena varanda com a lâmpada emitindo uma coloração amarela, rodeada por uma nuvem de cupins, a sonolência do cachorro que não liga para a minha aproximação, o barulho de um televisor ligado na casa vizinha, indicando que é hora da novela, talvez à das oito, porque uma menina começa a berrar “Eu quero ser a Bebel, mãe! Eu quero ser a Bebel!”. E imagino a cena: a menina de pé em cima da mesa, com as mãos na cadeira, rebolativa, como se estivesse no palco de um baile funk. A mãe briga. A menina se esgoela. Caminho com mais pressa, já é tarde. Não recordo bem o endereço da casa. Só o aspecto acanhado da construção. A figura de Adagoberto espalhada na cadeira de rodas, com uma barriga enorme e uma barba que acompanha o volume do corpo, não lembra em nada o policial da fotografia: bonito, forte e esperto. Tudo isso flutua na minha memória. “Aparece mais aí”, me diz. A mulher se esforça para cuidar dele e da casa. A pensão é cada vez menor. Cruzo com um bando de moleques que picham o muro do metrô, sentados sobre a carcaça abandonada de um carro queimado “pela rapaziada”. Um deles me reconhece. Aperta a minha mão. Me pergunta pela minha mulher e guria, “Deu sorte na vida, hein”, parece me ameaçar. “Que nada”. “Tô procurando o Adagoberto” “Não mora mais na área, não. Juraram ele de morte por ter sido policial”. ”Porra, logo o Adagoberto! O cara de cadeira de rodas””É...” Subo a rua onde era a casa. Está vazia. Uma inscrição com as iniciais da facção da vez: comando vermelho, terceiro, ada ou milícia é tudo igual. Logo o Adagoberto, penso comigo. Fininho aparece no fim da rua. É o vigia do conjunto. E aí Magôo! – é assim que ele me conhece. Quando eu era moleque tive muita brotoeja e sofria de fotofobia – o que soube mais tarde – andava com os olhos espremidos, na época o desenho ajudou a fixar o apelido. “Fala Fininho”. Ele com o trabuco na cintura. Magro. O nariz sujo de branco. “Faz o que na área?”. A gente que se cria por estes lados conhece tudo. Às vezes todos. “Dando um role”. “Se ligou no filme dos homens?(referia-se ao filme Tropa de Elite)” A gente com o nosso (Cidade de Deus) e agora eles com o deles”. “Posso invadir o conjunto?”, perguntei. “Na moral, pode. Mas me diz aí, gostou do filme?” “Ainda não vi não” “Agora o playboys vão querer tudo fortalecer os verme”. “Tô chegando” “Devagar na pista que o bagulho tá acelerado”, recebo minha advertência. Destino final: casa de Zélia. Bato palmas. A cachorrada dessa vez pula em cima. Late. Dói nos ouvidos. “Entra aí, Magôo”, Zélia acena. “Sumido”, ela soma a frase anterior. “Quem taí?”, pergunta o marido.”O Magôo” “Entra sem fazer esporro, tô vendo filme”. “Qual filme?”“ Tropa de Elite”, Zélia responde. Jota saí do quarto. Estuda na Uerj. “Cotas, tô lá por causa das cotas. No sufoco,mas levando. Já tenho uma linha de pesquisa: O GASTO DO ESTADO COM INDENIZAÇÕES. Todo mundo leva o seu bocado. O policial, o favelado, o povo que tá no meio. Cara,é um rio de dinheiro”. Todo mundo bem. Sigo para a saída do conjunto. Fininho está na ronda. “Motorizado e tirando onda com os otários”, anda um bom pedaço até sumir. “Adagoberto não mora mais na área”. “Zula, porra, quebraram ele. Era bíblia. Os caras não perdoaram. Mas vai ter volta”. “Magôo, é revanche mesmo. Não tem jeito não. Se eles quer nos engolir, vão mastigar muito espinho”. “Agora É NÓS com nosso filme e eles com o DELES”. “Magôo, não entra na dividida,não. Fica esperto,caí fora”. A cidade se abisma. Aplaude mocinhos e bandidos. A consciência amortecida. O metrô carrega para longe o subúrbio. Botafogo. Um rapaz desce assustado do morro. Relaxa quando percebe que não tem carro de polícia, apesar do batalhão ser quase ao lado. Tira a seda do bolso. Uma senhora reclama do cheiro. “Se vai para cadeia a gente ainda ajuda a sustentar”, pontua.

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