Exercício de Criação Parte II

“Você teria aceitado ficar comigo naquela noite?”. Ela riria. Bambolearia com as mãos na cadeira, um sorriso lhe iluminaria o rosto, largo, e as dobras de pele sumiriam, os braços rejuvenescidos se lançariam à frente, alisariam o rosto envelhecido, lembrariam aqueles olhos, como num espelho, as imagens, os dois jovens. José não sabia expressar toda a extensão de seu espanto por ver luzir naquele rosto desconhecido tanto calor, não imaginaria que a recepção seria daquela forma, se não tivesse dito tudo o que fora dito, se não fosse o impulsivo de anos atrás, talvez pudesse salvá-la do esquecimento, e salvando – a, resgatasse a si próprio no redemoinho que agora o levava para a região dessas conjeturas, mesmo triste, parecia querer acreditar no que os olhos erguiam a sua frente, e, sentiu pena de si mesmo pela impetuosidade. Agora aquela imagem se desfazia como a fumaça que some no ar, como ele mesmo, José, homem comum, desfeito entre milhões de outros homens, sem nada de especial para ser reconhecido, sem nenhuma marca que ajudasse a decifrar aos olhos alheios o coração de homem que carregava dentro de si, ora repleto, ora vazio. ”Você teria aceitado?”. Talvez a imagem se calasse, não dando resposta à indagação, não permitindo a ele perscrutar a verdade, acompanhá-la em seu passeio pelo tempo, acusando-o de intruso. José pensava em Marta. Ela terá existido? E a noite anterior e a cabine telefônica? O hotel? Talvez se não firmasse bem o pensamento, duvidaria de que tudo aquilo havia se passado, que agora dentro do ônibus, cortando a cidade, tudo aquilo resultasse de um comportamento anormal das faculdades mentais, como se ele assombrasse a si mesmo com lembranças inventadas. E se fosse verdade? Se assombrasse a própria consciência com esses passeios que não resultavam nunca em nada, só atormentavam, como se precisasse deles para se certificar de que vivia, de que não era um equívoco, uma falha no campo de visão de alguém, que não poderia ser descartado como um cisco, que os passos que marcavam a grama eram de fato seus, e, que aquele ônibus e todo o resto são partes da realidade. José duvidava se conseguiria encaixar as peças necessárias para compreender, rejeitava a idéia que em algum lugar, ela estaria perdida, os prédios da cidade perfilados, ela parecia escondida atrás deles, toda a cidade montava guarda para que não fosse encontrada, ou ela não quisesse ser encontrada, e ser encontrada para quê? Por quem? Não precisaria de penas alheias, carregava as próprias, que já machucavam e deixavam marcas. José se ressentia por não conseguir atravessar o próprio silêncio até ela, tocá-la com as palavras certas, fazer com que entendesse o que isso significaria, não, talvez não pudesse convencê-la de que não era somente excentricidade, mas o resgate de um homem perdido, em si mesmo, que só havia encontrado aquele caminho para retornar, aquela única maneira. A chuva recomeçou na cidade. Os pingos ricocheteiam na lataria do ônibus, José não tem força para mirar além, naquele primeiro horizonte que a janela rasgou na manhã, tinha medo, seria engolido pelas incertezas, ouvira falar de um poema que dizia mais ou menos isto “se ela fosse mil disseminadas na cidade”, sabia que suas chances seriam maiores. Ela é apenas uma. Desgarrada. E o poema impreciso, como todo o resto de sua história.

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