Criação a partir do conto A Cabine de Juva Batella - Parte I

Após o terceiro toque, José, abatido, acatou o desânimo. O corpo não agüentava mais ficar no pequeno espaço da cabine, as roupas molhadas já incomodavam e certa angústia combatia a ponta de otimismo conseguida a custo na conversa com Marta. A chuva parecia que iria durar toda a noite. E ele não sabia se corria ônibus para sua cidade àquela hora. Não tinha como deixar aquele lugar, ilhado, pensou em se refugiar, durante o período de chuva, ali, na cabine, eventualmente. Ou retornar para o apartamento de Marta, mas receou incomodá-la, poderia estar dormindo ou falando com o filho ou se preparando para dormir com aquelas máscaras de beleza tão comuns às mulheres, prometendo rejuvenescê-las, acabar com rugas e pés de galinha. Talvez fosse melhor procurar um hotel barato, com o dinheiro que tinha conseguiria pagar o pernoite, não precisaria ficar exposto ao tempo como uma carcaça de automóvel abandonada. A noite crescia nas paredes e janelas e eram raros os transeuntes que se arriscavam em sua travessia, temiam o mau tempo, procuravam rápido o caminho para casa, não se importando se naquele momento havia um homem engolido pelo abismo de luzes da rua, procurando ao redor alguma indicação, uma resposta ao seu problema. José lamentava não ter ligado antes para avisar de sua chegada, mas isso estragaria a surpresa, retiraria todo o inusitado do encontro, falsificaria as reações, porque ocupados com formalidades acabariam por tornar aquilo – porque não sabia como chamar aquela circunstância – uma pequena peça de teatro onde cada um deles sabia exatamente o que dizer e fazer e que ao final não tocariam no verdadeiro assunto da visita, porque ele com um nó na garganta, olhando-a, buscariam saber se ele existia ainda dentro dela, em algum lugar e se poderia ser resgatado, se as condições atuais permitissem esse resgate, se ela também concordasse em escavar dentro de seu interior as sensações perdidas daquele interlúdio. Sabia que ela poderia estar casada, que seu marido poderia não querer recebê-lo, que ela mesma poderia não querer ouvir falar de seu nome, que preferia manterem enterradas determinadas coisas e lhe pediria sinceramente para ir embora, que a deixasse em paz com seu passado. Isso tudo estalava dentro de José, intuía poder ser tarde demais, mas guardava aquela pergunta que o inquietava que deveria ter sido feita há trinta anos, que não teve coragem de pronunciar, que fracassou em negociar consigo mesmo naquele tempo longínquo, que o corpo parecia querer esconder atrás das marcas das mãos, das rugas embaixo dos olhos, do passo vacilante, tudo isso somado aquela noite chuvosa, aquela cabine telefônica, ao sinal de chamada irrespondido, ao medo de estar só entre as milhões de luzes e janelas que o espiavam, não tendo resposta, decidiu abandonar o local onde estava e ir para o pequeno hotel na avenida em frente, eram uma hora da manhã, ninguém atenderia ao telefone, ou se atendessem pensariam em se tratar de trote ou engano ou se limitassem a dizer um palavrão, que aporrinhasse outra pessoa, que amanhã era dia de trabalho. José esgueirou-se por entre os prédios, protegia-se nas marquises, matinha a cabeça ocupada pelo pensamento de que em algum lugar naquela cidade ela estaria adormecida, quase nem percebia que o próprio corpo também tinha se esgotado naquela espera, o cansaço entrevisto nos gestos, menos enérgicos, a memória tomada pela campainha do telefone, soando larga. Quase assustadora. José pediu um quarto. Naquela noite não sonharia. Talvez sentisse falta de Marta. A novela que fora adiada pelo mau tempo, a interrupção do trabalho na emissora, pensava na decepção dos atores, porque na sua cabeça tudo aquilo acontecia em tempo real, que todas aquelas coisas deveriam ocorrer em alguma parte do globo por ele ignorada, em alguma parte de um mapa que não lhe fora revelada, mas que era atingida pelas câmeras, pelos diretores, porque a felicidade estava restrita àquela terra, que fora dela não haveria salvação para o coração do homem, lá tudo acabava bem, as pessoas se reencontravam e sabiam exatamente o que dizer uma para outra e era tão bonito, e ele, José, não sabia o que diria se aquele telefonema fosse atendido, talvez se limitasse a ouvir a voz do outro lado da linha, ou diria o motivo de sua visita, marcaria uma conversa em um momento mais apropriado, ou desistiria de tudo, colocaria o fone de volta ao gancho, se resignaria, deixaria o passado onde está, no fundo daquele corredor onde não costuma passar, remoto na construção da casa. Voltava a pensar tudo aquilo que já conjeturara. Perturbando inutilmente o sono, afastando a possibilidade do descanso, distanciando a chance de outro dia, que apagaria a frustração deste, vivido como pesadelo. A manhã lançou luz sobre os prédios, acordando a cidade, e alcançava ao corpo de José, que dormia vestido, esquecera de se despir na noite anterior, mantinha numa das mãos o número da mulher que procurava, acordou sobressaltado por este compromisso, o cérebro martelado por aquela insistência, o pavor da mulher ter se dissolvido pelo aguaceiro da noite passada, toda a cidade ter se acabado e ele estivesse em um dos aposentos de uma grande arca que o tinha salvado, e que do banheiro sairia a fêmea que seria seu par na reconstrução do novo mundo, mas que ele, José, tinha certeza não ser a mulher que habitava suas lembranças, e não permitiria que outra mulher tomasse o lugar na sua lembrança daquela que ele havia amado ou que pensava ter amado. Ele não toleraria, não suportaria, e procurou a sua volta algo que pudesse ser usado para matá-la, não tinham direito de substituir a mulher de seu passado, mesmo que ela não existisse, mesmo que tudo aquilo não passasse de uma fantasia de sua cabeça, de um delírio, que toda aquela cidade fosse uma ilusão onde estaria preso, e lá estava a outra mulher, ele não hesitou, acertou-lhe o crânio e ela caiu morta. José não se atrevia a sair da cama, o pesadelo ainda o mantinha sob um nevoeiro, não conseguia fazer com que seus sentidos reagissem, não compreendia como se sentia acordado dentro daquele pesadelo, não suspeitava dessas armadilhas da mente. Pediu um café. Enquanto isso se lavava com cuidado, inspecionando o estrago da noite mal dormida. José sentou-se diante a janela. O céu recortado por ela não tinha nenhum segredo, não amparava o dia nascido, nem os homens que caminhavam dentro dele. Pediu uma ligação a telefonista. A mulher não existiria, pensou talvez o número pertencesse à outra pessoa, e que tudo não passasse de um equívoco, como toda a vida, e que a soma desses equívocos fosse à razão de sua existência, porque graças a muitos deles estava agora ali, não importando muito bem o que significa estar ali, mas não se culpava por não saber direito, nem ter diante de si o projeto para o homem que fora, agradecia-se por ter sobrevivido, conseguido um emprego, dando em si mesmo o tapinhas nas costas, se parabenizando pela inércia de sua carreira, o que muitos confundiam com cálculo, ele tinha certeza se chamava medo, não se expunha, não colocava a cabeça acima da linha de tiro, temendo perdê-la. José não se orgulhava de si, mas não permitia que sua autocrítica subisse a um nível que anulasse tudo o que fora construído até ali, como se em seu lugar estivesse um impostor. Não poderia acreditar nisso. Para provar que não era impostor ou covarde decidiu procurá-la, talvez o único elo que lhe ligasse ao outro homem que um dia tinha sido mostrando que parte dele sobreviveu. José temia que suas fraquezas o impedissem de prosseguir, olhava o horizonte desconfiado, talvez tenha desistido de alcançá-lo, se tudo isso resultasse em nada, era advertido a todo momento por sua consciência, se tudo não fosse idéia da cabeça de um velho que está para morrer e se dá o luxo de uma última loucura: a namorada que não tinha sido namorada. Somente para lhe fazer a tola pergunta : “Você teria aceitado ficar comigo naquela noite?” e olharia bem o que o tempo havia realizado nos dois, como agira sorrateiro roubando toda a riqueza que o corpo escondia, impondo-lhe certos constrangimentos que não ficariam bem nem diante de namorados. Talvez ela soltasse uma gargalhada. Virasse os olhos como se percebesse que ele tinha falado uma besteira, que nada lhe fora roubado, exceto o encontro daquela noite e que se quisesse poderia entrar, conversariam. José com o olhar parado permaneceria como hipnotizado por aquelas palavras, não daria aos ouvidos a importância que deveria, sentiria as pernas como um dia as tinha na juventude, mesmo paralisadas, o frio subiria ao ventre emurchecido, as mãos encenariam uma alegria perdida, como os olhos se lançariam naqueles outros com o medo e cuidado para não perdê-los uma outra vez.

Comentários

Juva Batella disse…
Pôxa, Mariel. Li a sua criação em cima do meu conto, e ficou bom, muito bom. Ficou forte. Você mudou o ponto de vista da Marta/Amélia para o José. Parabéns.
Abraços,

Juva
Anônimo disse…
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Anônimo disse…
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Anônimo disse…
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