Três resenhas passadas a limpo

De Pai para Filho: Sincronia com a História Recente do Brasil

O filme De Pai para Filho, de Breno Silveira, mesmo diretor de Dois Filhos de Francisco, trata da relação tumultuada dos músicos Luiz Gonzaga e Gonzaguinha, respectivamente, o pai e o filho de que trata a cinebiografia.
Se Gonzaguinha é o porta-voz de uma geração nascida sob a égide da ditadura, inconformada com os rumos do país, utilizando-se dos meios possíveis para resistência – inclusive numa arte engajada. Desse tempo, nos anos 70, datam livros que denunciam a tortura no país, escritos por jornalistas como Fernando Gabeira (O que é isso companheiro?); Álvaro Caldas (Tirando o Capuz) e Reinaldo Guarany (A Fuga), entre outros. Pode-se deduzir que sua militância musical encontrava raízes profundas em um cenário intelectual avesso ao período de exceção vivido no Brasil.
Embora não somente na música, ou na literatura, se tenham exemplos de oposição ao regime. As artes plásticas e em outros ramos artísticos também se manifestavam contrários ao cenário de pouca ou nenhuma liberdade no país. Pode-se, para exemplificar, relatar o engajamento artístico, no quadro das artes plásticas brasileira, da presença de obras de artistas plásticos como Wesley Duke Lee, Carlos Vergara, Antônio Dias para a elaboração de uma narrativa similar à esboçada na literatura: a de insatisfação com o regime dos generais. Conjunturalmente, essa amálgama de linhas de força, além dos movimentos estudantis, contribuiu para a gênese do pensamento político estético do autor de Grito de Alerta.
Gonzaguinha está em perfeito sincronismo com o seu tempo, é um homem atento às questões importantes para o panorama do país e tornou-se, através de sua poética, um tradutor dos anseios políticos de uma sociedade que ansiava a transformação do comportamento geral.
Luiz Gonzaga, apesar de o filme torná-lo um personagem quase saído de um Auto da Compadecida, vide as cenas protagonizadas pelo músico para não tomar parte das revoluções que assolaram o país, na década de 30. Breno Silveira, o diretor, atribui ao acaso a inclinação do compositor para a música regional. O que não é verdade.
A primeira canção de Luiz Gonzaga a emplacar sucesso nas rádios, Dezessete e setecentos, embora pareça ingênua, reflete a preocupação financeira – derivada das consequências da quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, repercutida ao longo da década seguinte – reconstituída com humor pelo autor de Asa Branca. Não é prejuízo nenhum tê-la apenas como uma animada peça musical, destinada ao entretenimento, embora o artigo intente relacionar a obra musical de ambos compositores, pai e filho, aos exercícios de discussão da realidade nacional, ensaiados no período formador de suas sensibilidades.
Nos programas de Ary Barroso, Luiz Gonzaga era gongado, quando se atrevia a tocar ritmos estrangeiros, como o tango, acento que pode ser entendido como nacionalista, uma das plataformas políticas do Estado Novo, mas pode ser também compreendida como uma deficiência musical, identificada pelo gênio do autor de Aquarela do Brasil.
A contrariedade de Ary Barroso, a provável deficiência musical de Luiz Gonzaga e as inúmeras rejeições de populares quando tocava na Zona do Mangue para amealhar alguns trocados, seriam forças suficientes para plasmar a carreira do autor de Assum Preto? Creio que a resposta é mais complexa e está ligada ao cenário cultural e político do período, tornando Luiz Gonzaga, tal como o filho, produto das forças circunstanciais que o tornaram um compositor de matiz vocabular e melódica única: o movimento regionalista da literatura da década de 30 tem grande parte nisso. Ao contrário do filho – Gonzaguinha – Luiz Gonzaga não era consciente da influência dessas ideias em seu imaginário. Contudo, atribuo a ela e ampla discussão sobre a questão nacional desenvolvida nesse período, a guinada artística do Rei do Baião. E não apenas ao gosto musical deste ou daquele que torcia o nariz para os ritmos sul-americanos em voga no país.
O filme de Breno Silveira empolga o público, embora não suscite uma reflexão sobre as raízes culturais que geraram artistas tão diferentes, mas tão íntimos, cada um à sua maneira, da história recente brasileira.







Políticas de Identidades no Brasil: José de Alencar


Em Cartas a Favor da Escravidão, José de Alencar, expoente do Romantismo, um indianista por ocupar-se dessa temática, defendeu que a libertação dos escravos deveria ser gradual, alegava que precisavam ser civilizados. Em contrapartida, alardeava o colapso que a abolição traria para a economia, advertência que servia de intimidação ao Imperador. José de Alencar gozava de forte influência política, por partilhar das ideias conservadoras da elite - da qual também fazia parte. Isto nada significaria, se o autor não estivesse absorto nas discussões escravistas e antiescravistas em voga. E se literatura por ele produzida não apresentasse um projeto baseado nas ideias correntes do século XIX : a eugenia e o mito do bom selvagem.
A opinião de José de Alencar sobre a inferioridade dos negros não constitui novidade para o período; assombra-nos, em um primeiro momento, que um escritor se posicione dessa maneira, porque o julgamos acima de diatribes, optando pela essência humana, sem a contaminação por linhas ideológicas duvidosas. Certos da crença ingênua de que o escritor, por sua sensibilidade, esteja imunizado aos apelos da temporalidade. A atitude de José Alencar é mais comum do que se pensa: o exemplo de Knut Hamsun, escritor norueguês, Nobel de Literatura em 1920, que após recebimento da premiação, presenteia o Führer da Alemanha, Adolfo Hitler, com sua medalha.
O autor de Iracema descartava o negro como um fator da formação do povo brasileiro. Ao contrário de autores como Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala) e João Ribeiro (História do Brasil) que o celebravam. A opção alencariana – para a construção de uma raça pura – repousa sobre o elemento indígena. Representa a busca por uma determinante que plasmaria a identidade nacional, pontuando uma arbitrariedade e a indicação do caminho do pensamento político do autor.
O Conde de Gobineau havia expressado restrições acerca da mistura de raças no Brasil e, posteriormente, outros autores, como Monteiro Lobato, a endossaram. Monteiro Lobato falava sobre as nossas formas grosseiras, como se tivéssemos coladas ao rosto máscaras horrendas. De tempos em tempos, ideias como esta que deveriam estar banidas do convívio humano, ressurgem.
As bases da plataforma de José de Alencar estão lançadas: brancos e índios no Novo Mundo, na América campeada por Marte. O primeiro como elemento desbravador, destemido, plasmado para conquistar e o segundo elemento, de índole pacífica, passivo à ação dos primeiros, receptáculo perfeito para noção de civilidade europeia, descendente da raça adâmica, encarnando o homem original do qual os europeus se criam também oriundos. Embora José de Alencar não faça alusão direta à submissão dos eleitos por nossos colonizadores, encena-se em Iracema (contato do indígena com o branco) essa sujeição através da teatralidade amorosa. Deveria ser um sofrimento atroz para o autor que, em Ubirajara (momento anterior à chegada do branco), informa-nos o modo como viviam esses traídos que já foram os donos dessa terra.
A saga dos vilipendiados indígenas não se extingue: se os brancos simbolizam aquilo que em essência eram os selvagens, de forma acabada; em O Guarani (o indígena entre os brancos), esse componente deve ser tragado em um movimento autofágico. O branco e o indígena em semelhança tão completa não se distinguiriam e tal complementaridade não significava um risco para as individualidades envolvidas.
Se o indígena e o branco estão situados ao centro para José de Alencar, relegados à periferia permanecem os negros. Esta pequena comunicação sobre a política de identidade no Período do Romantismo no Brasil: A Problematização da Cultura Indígena e Branca em José de Alencar fora apresentada quando cursava a faculdade.
Outras comunicações foram realizadas sobre obras basilares, como: Os Sertões, de Euclides da Cunha, e, Macunaíma, de Mario de Andrade. Conforme a nuance dos matizes políticas, deslocou-se o eixo em que se repousava o que se entendia por uma identidade pátria e sobre qual objeto de sua eleição se estenderia: se sobre o indígena, o sertanejo ou o mestiço.





Vik Muniz e a Holografia


Embora o artista plástico paulista Vik Muniz, radicado nos Estados Unidos, prossiga angariando público, conquistando espaços de exposição, consolidando sua carreira no país e no exterior, temo que sua obra, composta pelo tal lixo extraordinário, não exista. Os críticos de arte no Brasil teimam em afirmar o contrário. E apontam as fotografias como o produto final de sua laboração artística e justamente esta indicação intriga e desperta – no observador – perguntas pertinentes ao processo engendrado pelo artista plástico – que salvo erro, vem nos enganando e a todo o mercado de arte, produzindo uma obra na qual não podemos pegar, porque prescinde de materialidade.
Nenhum fotógrafo, por mais genial, poderá capturar os elementos que compõem a sua fotografia. Cartier-Bresson não aprisionará aquele homem que quase caminha sobre as águas – espectro de messias citadino, desdobrado em sua imagem e posteriormente mergulhado nela apaixonadamente, um narciso – deus e flor – que a célebre imagem não nos pode dar, mas facultou à nossa imaginação completá-la, tamanha a força poética transmitida pelo conjunto. Se não são aleatórios os objetos da composição nesta fotografia, não se pode pegá-los e fixá-los por estarem em seu estado natural? Retê-los, através do olhar atento do artista, por sua virtude poética?
O fotógrafo que se detém sobre a paisagem móvel da realidade jamais poderá recompô-la para oferecer-nos outra perspectiva sobre aquilo que foi construído. Ele não poderá reeditá-la, porque dentro de instantes estará desfeita. Por esse motivo a singularidade do que nela vai representado, porque esvanecida, ninguém mais poderá recriá-la e decorre daí toda angústia. E ressuscitá-la é impossível, pelo menos quando não estamos com os olhos voltados para ela, a fotografia, – (re)acendendo-a.
Vik Muniz poderá recriá-la à vontade, porque se utiliza de método que não se reduz a fotografia da paisagem móvel da realidade, não está detido em sua janela imaginária, sentinela do vazio, para apreender o instante de epifania que se avizinha. Há um projetor espalhando as linhas da imagem pelo imenso salão e o lixo extraordinário se fixará em seus contornos, levantando para a dimensionalidade aquilo que pretende captar com sua lente. Seja de lixo, de açúcar ou material semelhante à pedra de diamante, nunca temos a obra; miramos o simulacro dela trazido pela fotografia. Daí o blefe do trabalho de Muniz. Temos a holografia, a representação da representação, portanto nada. A obra não existe. Ela está entre o fotógrafo e aquilo fotografado, em um limbo em que seu resgate é impossível.
. Como afirmei, anteriormente, a obra em si prescinde de materialidade; o que é aprisionado por nós é seu fantasma, encerrado na chapa da fotografia, clamando vingança não só contra Vik Muniz, mas contra todo o mercado que celebra qualquer coisa como arte – sem nenhuma discussão. Em menor escala, Vik Muniz obriga-nos a um novo exercício de ver o urinol nas salas dos museus, embora sua obra apresente um aspecto muito mais agradável. Nesse sentido, se não é obra conceitual, discute o conceito de obra – em um tempo tão díspar em definições.
Não se pode negar, Vik Muniz é um homem inteligente e talentoso e soube nos aplicar essa peça – que apenas se prolonga, porque galeristas teimam em não enxergá-la. Quando tirarem a venda dos olhos, Vik Muniz já estará aprontando outra das suas – com sofisticada artimanha – e nos embasbacará novamente com sua argúcia/astúcia.
 







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