Outra velha resenha revisitada

O Poeta da Efemeridade



Adeus é um livro conflituoso. Mórbido nas alusões que faz à morte. O índice não é índice, são epitáfios. O primeiro movimento do livro é chamado de Quadra 28; Lote 10, como na organização de um cemitério, trazendo nesta numeração a data de aniversário do autor. O prefácio é escrito nada mais, nada menos que por Jó; o autor tomou emprestado da Bíblia as queixas do famoso moribundo para traduzir o estado de ânimo que o levou a escrever também de certa forma as suas jeremiadas. O segundo movimento do mesmo livro, insiste o autor em chamá-lo de Quadra 05; Lote 11; talvez a data de um provável desencanto que desencadeara o processo de confecção do livro em si - como este objeto bifronte que, além de livro, quer ser a pedra da campa do poeta. O estertor romântico atravessa toda a composição deste, no mínimo, curioso livro. De Rimbaud à João Cabral de Melo Neto, está repletos de referências, e se o exótico pode ser apontado como um dos fatores da construção do labirinto, a citação de desfecho pode nos assustar : “Revertere ad Locum Tumm”.

Os poemas, compostos em datas distintas, representam matizes diferentes de um aprendizado poético orientado primeiro pela busca de uma dicção própria, diria mesmo particular, na abordagem do material poetizado. Reivindicação dos Poetas, poema de abertura do livro, deve a Drummond determinado imposto por sua forte influência, percebida através da composição de versos como estes: “O amor tem dessas vaidades / Que pena é tão bonito,/ Mas tão egoísta, é tão puro,/ Mas tão explorado. / Deixem-no viver em paz!. E outros vestígios espalhados, como o verso síntese de quase todo um poema de C.D.A : “O mundo anda como um expresso abarrotado “. Estão dispostas as duas chaves para o entendimento da poesia de Jefferson Alves Vieira : o amor e a busca de identidade, como ele mesmo esclarece mais à frente num poema “duas inteiras para as finalidades do conhecimento”. E nesta direção, avança e vaticina o tipo de poeta que quer ser : “Sabe querida, com a angústia que escrevo,/ Não quero mais cantar o que amo,/Quero ser o poeta dos loucos.//Não dos fracos./Apenas dos loucos.”E o fluxo de sua poesia andará por esta trilha, dialogando, ao longo do aprendizado, com os grandes poetas, agora como um autêntico bandeiriano.

O amor ensaia a fuga daquilo afirmado pelo próprio poeta e ousa aritimetizações como em 2n : “O amor resulta 2n / Amor é 2n / Quando você amar minha carne/ Em mim / 2n – 1 vai ter mais 1”. O resultado comove pelo esforço de compreensão da natureza por meios tão distintos e que a poesia nos prova tão complementares. Há no livro uma dramaticidade desnecessária, conflituosa com o desenho que ele ergue de si, como mostra este trecho : “Chorava alcoolizado/ a tua ausência / nos braços do nocaute / e, apaixonadamente, beijava a fria lona/ por falta de outra namorada”.

No livro, há um grande poema, um verdadeiro painel. Chama-se "Amor". Nele se percebe a grandeza à qual o poeta se empresta, e a virtude com que trabalha a argumentação amorosa. Pode se ler : “Abriste a boca para que pragas imensas de teu intestino devastassem as plantações / Cortaste teus pulsos no rio / E envenenaste os peixes, as aldeias e o restante dos índios / Com seu cavalo azul, de olha entrevado e crina de ouro”. O painel do poema lembra um imenso quadro de Bosch e todo o poema é a afirmação do potencial construtor e destruidor do amor sobre a alma humana. Jefferson Alves Vieira é o poeta do passageiro, das sensações que não se cristalizaram : “Esta tristeza passa.../Se não passar/ Com certeza / Eu passo”. O poema, quase um chiste, assevera a traição operada por um deus desabituado à felicidade, que só aceita as coisas em estado aflitivo, para depois abandoná-las a própria sorte e descrédito : “Como se eu tivesse feito um pacto / Com o Diabo / E o próprio Diabo tivesse me abandonado”.

Nem tudo é desolação e abandono. No livro há louvação do que merece ser louvado, como apregoa Gilberto Gil em canção de sua autoria. Jorge Wanderley, poeta, é lembrado como versos comoventes : “Pra que tanto se emocionar / Se sabia nunca encontrar / Dante ou Shakespeare carregando malas / Em aeroporto nordestino?// Por fim / Abriu a sombra / De tuas asas sobre o Capibaribe / E o que vai na gente / não sai correndo / Não se apavora / Apenas, nos mata!”. O tom coloquial, o clima de conversa, envolve o leitor, nesta última evocação ao poeta e amigo antigo.

Se há um exagero nas epígrafes e excentricidades na composição do livro, há por outro lado poemas que compensam a travessia do volume que espera vir à luz por alguma editora.


Adeus
Jefferson Alves Vieira
Edição do Autor

Resenha veiculada em 27/8/2006 no blog Paralelos hospedado pelo Globo

Revista em 05/05/2015

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