Movimento (estudo) trecho
I
'Eu
passaria os dias no museu observando mamãe; os funcionários
desconfiariam de meu desequilibrio, conversariam cautelosos com o
garoto parado diante do quadro Mamãe no cozinha, procurariam não
aborrecê-lo, temeriam uma síncope ou um esgotamento nervoso. O
museu não quer escândalo, não quer estar em jornal por interromper
um observador contumaz, um crítico nascente sob o efeito mirífico
da obra de arte'
MINHA
MÃE era um quadro cubista. É uma informação, inclusive, sob ponto
de vista da multiplicidade de perspectivas, perigosa. Em si prova
que não a conheci; e se arrisco em afirmação contrária, conheci-a
em parte. E em parte, isto quer dizer, na que me parecera mais lógica
para minha compreensão; minha mãe, sem dúvida, estava ali,
inteira, à disposição de quem quisesse vê-la e não lhe faltaria
parte alguma se exigida uma exposição minuciosa de seu aspecto:
cabeça, ombro, joelho e pé, como na brincadeira infantil.
Não
lhe estaria faltando nada sob esse ponto de vista, o que me faz
acreditar em um equívoco de minha ótica, embaralhando-a, tornando a
simples descrição confusa: pé, cabeça, joelho, ombro ou outra
combinação esdrúxula. Portanto, minha perspectiva em relação a
minha mãe sempre mostrou-se desarranjada visualmente e, sob esse
viés, todo o resto prosseguiria com igual lógica. Não seria
novidade se meu relato sobre minha mãe discrepasse da narrativa de
meus irmãos. Eles a viam sem interferências, com bastante
objetividade, com tanta objetividade que temia que ela se
transformasse num pedaço de papelão.
Minha
mãe era um quadro cubista, ponto final. Subia as escadas, limpava os
cômodos da casa, varria o quintal com a graça de nunca ser a si
mesma: reinventava-se, aos meus olhos, certamente, qualidade de uma
genuína obra de arte. Se ela não estivesse em casa lavando pratos,
não estaria em outro lugar que não em um museu; em um museu não
poderia olhá-lo com tanta insistência, por tantas horas, devido ao
expediente de funcionamento. Os funcionários me colocariam para
fora, dizendo para voltar amanhã. Eu voltaria e receberia ao término
do novo expediente a mesma solicitação. E novamente.
Eu
passaria os dias no museu observando mamãe; os funcionários
desconfiariam de meu desequilíbrio, conversariam cautelosos com o
garoto parado diante do quadro Mamãe no cozinha, procurariam não
aborrecê-lo, temeriam uma síncope ou um esgotamento nervoso. O
museu não quer escândalo, não quer estar em jornal por interromper
um observador contumaz, um crítico nascente sob o efeito mirífico
da obra de arte. Não, eles não me enxotariam do museu. Talvez, para
me manter à distância, me presenteassem com uma cópia em tamanho
natural do quadro, utilizando material e suporte idênticos, com
reprodução, inclusive, da assinatura do artista. Se mamãe
estivesse em um museu teria que me tornar um gatuno.
Não aceitaria uma cópia de mamãe como recompensa por tê-la sob
vigilância; minha mãe seria minha, apenas minha e pronto. Quem
ousasse olhar para ela, perderia os olhos; quem se atrevesse a
mirá-la por tempo demasiado, morreria amaldiçoado, cairia PUM! E
não levantaria mais. Minha mãe era minha; não há nada demais em
se querer as coisas com tal força. Ou há? Minha mãe não estava em
um museu; estava em casa, lavando pratos, embaralhada toda vez:
joelhos, ombros, cabeça e pé.
Quando
me estendia a vassoura, para ajudá-la nas tarefas domésticas, a
vassoura contaminava-se pela quadriculação. Transferida para minhas
mãos o zumbido de vespas produzido pela quadriculação desaparecia
e a vassoura voltava ao normal. E meu assombro desaparecia. Menino,
não vai me ajudar não, é? Pé, joelhos, cabeça, ombro. Não me
olha esquisito assim, ela me repreendia. Mãe, você é tão bonita.
Amolecida, deslizando pelo piso, reorganizada, por um instante,
cabeça, ombro, joelho e pé, o lugar que seria a boca, de fato era
boca, produziu um estalido, gramafone emperrado em sílabas d' EU TE
AMO, FILHO, chiado. Desfez-se, era outra, desarranjo de partes, pé,
cabeça, ombro, joelho, corria para atender a porta. A casa-colméia
zumbia em meus ouvidos. Minha mãe era um quadro cubista. Repleta de
sons engravidava o ambiente. Abriu a porta para meu inimigo: MEU PAI.
II
'Era
um bom pai: nada nos faltava à mesa. Tínhamos roupas, calçados,
brinquedos. Só não nos permitia a imaginação. Confinava-nos à
pobreza do real, desalinhado no terno com que chegava da Companhia de
Seguros. Vez por outra batia à máquina os relatórios cheios de
tédio e solidão dos acidentados transfigurados em cifras
indenizatórias'
MEU
PAI não interessa à narrativa. Ele poderia ser levado por
alienígenas. Não faria a menor falta. Não faria mesmo diferença
se meu pai fosse sequestrado por alienígenas. Talvez ele mesmo em
vez de ser humano fosse uma alienígena. Se ele fosse um
extraterrestre em vez de um automóvel na garagem teríamos um disco
voador. E se fosse um disco voador teria que danificá-lo para que
ele não levasse mamãe para longe, para outras paisagens, para
distante de mim. Se ele, meu pai, a levasse para longe de mim, teria
que interrogá-lo, como nos filmes americanos, para saber a verdade
sobre o paradeiro de minha mãe. Custaria-lhe muito se não me
dissesse a verdade sobre o esconderijo de minha mãe, custaria-lhe
tanto choques que talvez não sobrevivesse. Talvez não suportasse,
suplicasse MEU FILHO, SOU EU, SEU PAI. Eu não o reconheceria, não
abriria a guarda, um ser espacial é ardiloso, malicioso e malévolo.
Liberte a minha mãe, intimaria-o, não a machuque. MEU FILHO, ele
imploraria, com os olhos enormes, na cabeça pequena, de nariz fino.
Não, não me renderia, não aceitaria poupá-lo enquanto as
informações verdadeiras sobre o cativeiro de minha mãe não fossem
apuradas.
Sentado
na poltrona diante da televisão parecia humano. Tão humano que meu
dedo, se minha unha estivesse crescida, poderia feri-lo, cortá-lo ou
perfurá-lo; se minha unha estivesse crescida seriam garras como a de
um felino selvagem, perigoso. E meu pai não estaria mais diante da
televisão assistindo o noticário. Ele não estaria mais com o braço
em torno da cintura de minha mãe. Toda vez que meu pai tocava em
minha mãe sua beleza arrefecia, murchava. Meus olhos adoentavam-se
de real. Meu pai era medíocre, repulsivo, desonesto por carregar
consigo a realidade para casa. Era um bom pai: nada nos faltava à
mesa. Tínhamos roupas, calçados, brinquedos. Só não nos permitia
a imaginação. Confinava-nos à pobreza do real, desalinhado no
terno com que chegava da Companhia de Seguros. Vez por outra batia à
máquina os relatórios cheios de tédio e solidão dos acidentados
transfigurados em cifras indenizatórias.
Meu pai me roubava minha
mãe. Ela, ao lado dele, parecia com todas as outras mães das
redondezas. Meus irmãos gostavam mais dela assim, com meu pai a
tomando pela cintura. Levantando-a no ar, com uma felicidade comum a
contagiar-lhe os membros. Limitava-se às declarações ordinárias;
mamãe encharcava-se das palavras ordinárias de meu pai, de tão
ordinárias subiam-lhe, em sua percepção, uma poesia incomum.
Talvez meu pai fosse um alienígena poeta, alguém descido à Terra
para tomá-la. E minha mãe, esta minha, apenas, a mocinha que
redimiria a humanidade diante da fúria animalesca desconhecida
DELE.
MEU
PAI não interessa à narrativa. Interessa de um interesse que deve
desinteressar. Um interesse desinteressante, porque ele era a
realidade. Sujava tudo com a lama trazida da rua, emporcalhando o
piso da casa polidos pelos braços de mamãe, sob a minha supervisão,
sob minha coordenação, sob minha autoridade. Montava em minha mãe,
minha alazã, fugíamos para a fuga do horizonte. Chicoteava-a com
minha mãozinha gorda, de dedos curtos; as pernas de minha mãe saíam
da saia azulada, as veias azuladas de minha mãe saltavam das pernas
dobradas, as pernas arqueadas de minha mãe pousavam sobre o piso
asseado, o piso asseado refletia minha mãe e o pequeno cavaleiro em
sua corcova, o cavaleiro em sua corcova, para minha mãe, era um
príncipe. A minha alazã era uma rainha. Eu declarei morte ao rei.
Queria casar com a rainha. Meu pai precisava ser eliminado, morto,
desovado em algum lugar que não afetasse a minha vida com minha mãe.
Matá-lo não era uma ideia tresloucada. Servia para pouco meu pai:
apenas para reprimendas e admoestações, cocres e safanões.
Não
havia saída: colei em todas as portas o retrato de meu pai com um
longo texto explicativo de sua origem extraplanetária. Minha mãe,
agora cabeça, ombr, joelho e pé, ria. Meus imrãos também. Meu pai
mantinha-se quieto, observando-me. Talvez soubesse que caçoar de mim
não adiantaria para poupar-lhe alguns dias.
III
'Vou
para a frente do espelho com minha borracha escolar. Tento apagar os
vestígios de meu pai do meu rosto, esfrego a borracha na minha cara.
Esfrego violentamente. Avermelham-se as partes friccionadas. Minha
mãe horrorizada com o vergões em minha pele toma de minha mão a
borracha, O QUE VOCÊ QUER FAZER,MENINO? Os olhos atônitos dela são
tão bonitos; o pânico expressado pela boca bem feita de traços
delicados também. QUERO ME PARECER COM VOCÊ, MAMÃE, SÓ COM VOCÊ'
Pareço
pouco com meus irmãos. Pareço pouco com meu pai. E pareço muito ,
mais muito com mamãe. Eu pareço pouco com meu pai, pareço mesmo
pouquíssimo, pareço tão pouco que infelizmente não percebem que
meu pai e eu não somos iguais. Sempre dizem quando somos
encontrados, É A CARA DO PAI. Não gosto nada de ter a cara do pai.
As pessoas parecem ver isso, corrigem depressa, TEM TRAÇOS DA MÃE,
OS OLHOS, A BOCA...
Satisfeito,
um pouquinho a mais, concedo um sorriso, ELAS sorriem em resposta.
Quando se afastam, somem para outro lugar da casa. Vou para a frente
do espelho com minha borracha escolar. Tento apagar os vestígios de
meu pai do meu rosto, esfrego a borracha na minha cara. Esfrego
violentamente. Avermelham-se as partes friccionadas. Minha mãe
horrorizada com o vergões em minha pele toma de minha mão a
borracha, O QUE VOCÊ QUER FAZER,MENINO? Os olhos atônitos dela são
tão bonitos; o pânico expressado pela boca bem feita de traços
delicados também. QUERO ME PARECER COM VOCÊ, MAMÃE, SÓ COM VOCÊ.
Ela me aperta contra o peito, forte. Não há nada de errado parecer
com seu pai, rapazinho. Você é mais bonita. Vá lavar-se, tome um
banho para a gente sair. Mãe, eu não pareço com meus irmãos, não
pareço com meu pai, só pareço com você. As visitas despedem-se.
Gostaria de despedi-las. Uma vez meu pai foi despedido. Despedido é
ficar proibido de voltar a um lugar, porque só se entra em lugares
se somos convidados.
MEU
PEQUENINO não quer parecer com o pai. Não quer parecer um bruto?
Esfregava contra o meu seu rosto perfumado. Eu repetia a ladainha:
pareço somente com você. Ela me beijava a boca com lábios quentes
de ternura, colava-se ao meu corpo diminuto; minha mãe me pertencia
que a presença do meu pai não passava de um fantasma indesejável
despejado do armário que habitava. Se você não contar a ninguém,
a ninguém mesmo sempre ganhará um beijinho como o de seu pai: assim
assim nessa boquinha rósea. Eu prometia qualquer coisa para ter os
privilégios de meu pai, para substituí-lo, expulsá-lo dos braços
de minha mãe. Promete? Os meus olhos irradiavam a resposta. Meu pai,
o fantasma expulso do armário; meu pai um fantasma sem lençol para
cobrir-se para assombrar quem fosse. Pobre fantasma, o meu pai.
Pobre, pobre. Mãe você dorme comigo como dorme com papai? A sua
cama é muito pequena, meu doce. Eu me espremo nela para você caber
inteirinha. Ah, meu doce, quando seu pai viajar, dormirei com você.
A torcida para que o trabalho de meu pai o mandasse para longe era
grande. Perguntava-lhe todos os dias se iria viajar: Pai, tem viagem
marcada? O guri quer me ver pelas costas, não é? Não, quero não,
pai. Disfarçava com algum arrependimento.
Minha
mãe, antes de dormir, chamou-me: AMANHÃ SEU PAI VIAJARÁ. CUMPRIREI
MINHA PALAVRA. Dormi radiante. Meu pai viajará, minha mãe será
minha. Meu pai, no dia seguinte, arrumou a mala com umas peças de
roupas, beijou a todos nós. E dirigiu-se a mim TOME CONTA DE SUA
MÃE, HEIN, RAPAZINHO. PODE DEIXAR COMIGO, PAPAI, respondi
marcialmente. Meus irmãos despachados para o colégio. HOJE O DIA É
NOSSO, disse minha mãe. O zumbido do entrechoque de vespas cessou e
uma voz nítida se escapou por uma dentição alvíssima: MAMÃE é
toda sua.
A
campainha insistiu outra vez. As visitas do dia anterior assomaram à
sala. Olhe só o rapazinho, tomando conta da mamãe? Minha cara de
nojo deve tê-las intimidado, trataram logo de seus interesses e
desapareceram. Agora minha mãe era minha, só minha, até a chegada
de meus irmãos.
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