A Celeuma da Granja Comary
'A
posição privilegiada junto à imprensa torna nossos jogadores mais
poderosos que diplomatas e ministros. Se a dimensão da mobilização
contra o racismo fosse cooptada para a discussão dos problemas
internos do país - relevante mundialmente por sediar a Copa -,
teríamos escrito um capítulo considerável não somente com os pés
dos jogadores dentro de campo'
Mariel
Reis (marielreis@ig.com.br)
O
lateral-direito da seleção brasileira, Daniel Alves, protagonizou
uma campanha contra o racismo que se espalhou por todo o país quando
reagiu ao episódio da banana atirada por um torcedor em um estádio
europeu e esta foi comida pelo atleta em uma reação que repercutiu
fortemente nas redes sociais, inspirando a campanha SOMOS TODOS
MACACOS propagada pela agência de publicidade do jogador Neymar.
A
solidariedade ao jogador e o ato de repúdio ao racismo nos campos de
futebol provocaram ações desencontradas, polêmicas questionáveis.
Embora importantes para o debate sobre a questão do negro, não
apenas nos esportes, mas em seu convívio com a sociedade e as
sequelas do regime escravocrata. Paulo Cesar Caju, ex-ponta esquerda
da seleção brasileira, atuou com Pelé na década de 70, na
seleção, cobrou um posicionamento do ex-companheiro de time sobre
os crimes de racismo em campo em longa entrevista ao jornal O GLOBO.
A
indignação de Paulo Cesar Caju não reverberou como imaginado,
legítima ao buscar apoio do maior atleta do século contra o
racismo. Luciano Huck, apresentador de televisão, dono de uma grife,
aproveitou para o lançamento de uma camisa com o slogan da campanha,
cobrando R$ 70,00 por cada peça.
Duas
apropriações distintas do combate a diferença racial em campo,
dois modos de apreensão do problema: um prioriza a conscientização
da população através da manifestações de seus ídolos
esportivos; outro quer espalhar a mensagem da campanha, ampliando seu
alcance, transformando cada pessoa em um outdoor do lema, sem abrir
mão do lucro.
O
desencontro das ações investidas pelos dois atores somam-se, na
verdade, ao invés de anularem-se.São alternativas para a discussão
do problema racial. As diversas apropriações são indicativos de
suas perspectivas dentro de uma sociedade cujo consumo, o
individualismo e o espetáculo pautam as manifestações acerca dos
fatos.
A
consciência política das manifestações acerca do racismo
surpreenderam mesmo setores especializados cujo ceticismo não
permitia crédito aos jogadores de futebol. A lógica do mercado,
segundo conservadores, não poderia torná-los agentes politizados
para criticá-la; inseridos numa engrenagem que movimenta milhões de
dólares não se preocupariam com política e seus derivados. A
discordância está em exemplos de atletas esclarecidos: Paulo Cesar
Caju nunca dissociou vida e ação política.
O
episódio da Granja Comary, em Teresópolis, encena o impasse diante
do que sofreu a região com as chuvas e a presença da seleção
brasileira para a concentração. A consciência política anterior
dos jogadores desapareceu diante da maquiagem realizada na região
pela FIFA? Por que os jogadores não se recusaram a treinar no local
em protesto com relação ao abandono da cidade pelas autoridades?
Não seria o momento de capitalização do prestígio dos atletas
para além do futebol? Creio que a situação não é confortável
para a maioria dos atletas concentrados na Granja Comary.
É
importante, pelo prestígio da seleção, apontar problemas
estruturais do país,além do racismo. Talvez não seja papel dos
jogadores, mas o é dos brasileiros;e se eles o são, nascidos no
país, internacionalizados pelo capital, é dever deles também. A
posição privilegiada junto à imprensa torna nossos jogadores mais
poderosos que diplomatas e ministros. Se a dimensão da mobilização
contra o racismo fosse cooptada para a discussão dos problemas
internos do país - relevante mundialmente por sediar a Copa -,
teríamos escrito um capítulo considerável não somente com os pés
dos jogadores dentro de campo. Marcaríamos gols nas cabeças de
milhares de brasileiros que têm em seus ídolos as tábuas da Lei -
entregues apenas uma vez por Deus a Moisés,transfigurado em onze
mortais dentro das linhas de campo.
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