Mato sem Cachorro
O alerta máximo das UPP's situadas nas
comunidades do Rio Janeiro é indicativo de uma guerra. A guerra do
Estado para convencer seus habitantes de que pode promover justiça,
lazer e bem-estar social. De fato, parece que a cada passo para a
conquista do Estado desses valores, há um retrocesso em sua maneira
de introduzi-lo e, ainda, uma variação do entendimento do que é
bem-estar entre o Estado e o povo. Talvez compreendendo esta
significativa divergência, as autoridades envolvidas com a segurança
pública dos cidadãos entendam que é uma prática equivocada esta
paz armada estabelecida dentro dos morros e favelas cariocas.
O caso da auxiliar de serviços gerais
Cláudia Silva Ferreira é o reflexo de que o Estado ainda não sabe
servir aos seus cidadãos, confundindo-os com alvos de sua ação
violenta. O modo como agiram os policiais, nesse caso, revelou-se
devido a intervenção de um desconhecido que, com o celular, filmou
o grotesco da cena em que a mulher é arrastada pela viatura policial
quando a porta traseira do veículo se abre. O advento da
democratização da tecnologia possibilitou o registro e a posterior
identificação dos responsáveis da morte de Cláudia Silva
Ferreira. As últimas notícias acerca do caso: a liberdade
provisória concedida aos policiais, o desconforto dos familiares da
vítima e a situação tensa nas áreas ocupadas pela paz armada do
Estado.
A discussão dos valores implantados
pelas UPP's não foi levada aos moradores, não foi negociada com as
frentes que representam seus interesses, não teve consultada as
bases dos movimentos sociais que atuam nessas áreas, antes da
entrada da polícia. A ação política da linha de segurança do
Estado, definida em gabinetes, não levou em consideração os pontos
de vista dos moradores dos locais de risco, tampouco suas histórias,
que não são poucas, envolvendo sua relação com o poder
constituído, isto é, a polícia. Uma velha conhecida das regiões
pobres, dos morros e favelas cariocas. A polícia, embora hoje lute
para a transformação de sua imagem, não pode negar que ela está
associada à corrupção, à truculência e ao assassinato. Não
poderá negar que suas vítimas, em sua maioria, são homens negros e
pobres. Um perfil que não se alterou ao longo da existência da
corporação que, embora sob comando de Beltrame, quer buscar uma
mudança substancial em seu modo de ação.
As UPP's instauraram uma paz armada.
Surge uma imagem a traduzi-la, saída do imaginário do cinema
americano, um forte resistindo contra o ataque dos indígenas. É uma
cena muito conhecida até do espectador mais elementar. Representa a
política de avanço para o Oeste americano. John Wayne encarnou
muitos dos mocinhos dessas películas, torcíamos pela aniquilação
dos peles vermelhas. E esquecíamos de que eles também eram
americanos, que tinham suas terras invadidas, sua gente dizimada e
sua cultura desprezada. Em muitas das minhas visitas as áreas
ocupadas esta sensação era nítida e os impasses entre o discurso
do colonizador e do colonizado estavam expostos para quem quisesse
ver e tivesse coragem em denunciar, sem favoritismos, esta outra área
de guerra instalada nas regiões antes dominadas pela violência.
A polícia é o braço mais visível do
Estado. Numa sociedade organizada é imprescindível a sua existência
para a proteção dos cidadãos; sabemos, pela ficção,
principalmente através de filmes, o que seria uma sociedade sem lei
ou regida pela lei do mais forte. Retrocederíamos a um estado de
selvageria em que nada garantiria nossa integridade física ou de
nossos bens. Teríamos que nos tornar todos justiceiros,
vivendo à beira de uma catástrofe social. Toda esta situação
seria insuportável. A supressão da polícia não é a solução
para os problemas decorrentes de ações infelizes e de intervenções
desastrosas. No entanto, a inteligência brasileira parece ter se
simplificado, nesta última década, para a discussão dos problemas
de nossa realidade: assaltaram o cenário da política atores sociais
maniqueístas, comprazendo-se apenas em apontar o Bem e o Mal,
decidindo-se, como templários, estar ao lado do Bem, parecendo
discernir o que nós, observadores da realidade social, temos
dificuldade em diagnosticar. Não há uma inteligência clara que
articule a discussão de modelo do aparato de vigilância social.
As universidades brasileiras poderiam
começar o fomento à discussão. Os departamentos de Ciências
Sociais, de Direito, de Psicologia, de Estudo da Violência, entre
outros, poderiam abrir um caminho para a renovação do aparato
policial da sociedade brasileira. A dissociação entre os membros do
corpo social brasileiro é responsável diretamente pela fratura da
nossa realidade. A polícia brasileira, não apenas carioca, como
quer Beltrame, não deveria ser uma discussão de departamento, mas
de toda a sociedade preocupada com o rumo de si mesma. O alerta
máximo das UPP's é o indicativo de que a paz armada proposta pelo
Estado é provisória, de que o povo se pergunta com quem está mais
protegido: se com os traficantes ou se com os policiais. É uma
resposta difícil mesmo para um extremado legalista que vê o
noticiário exibir as imagens de Cláudia arrastada pela viatura
policial. O pior é que cada região carente - morro ou favela
carioca -, tem a sua Cláudia e não há lá ninguém para filmá-la.
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