A Lembrança mais bonita (conto de Mariel Reis)





            Ela perguntou-me qual era a lembrança mais bonita, a resposta emergiu de uma noite, distante demais no tempo para causar embaraço em nossa conversa. Ela morava fora, estava casada e tinha um filho. Reunidos em torno da mesa não tínhamos outro assunto a não ser nós mesmos e a consequência de nossas vidas. Havíamos feito o que podíamos dentro das regras de um jogo inútil cujo resultado, embora previsível, ainda surpreende.

            A vida confortável para ela tornou-se uma monotonia, para fugir passou a ter amantes. Apenas uma distração, que outra vez, com o tempo, pontuava para a rotina. O marido  não a compreendia. Jurava-lhe amor e a verdade transparecia nas palavras balbuciadas por ele, ignorante das pausas e silêncios dela. Ambos escavavam, entre os dois, um abismo, ela sentenciou. Não me ocorreu melhor palavra. Me desculpe, você é um escritor. Deve me perdoar pela minha simplicidade vocabular. Acho que a palavra adequada seja declínio, despenhadeiro, precipício, profundezas. Acentuou a pronúncia desta última.

            Agora, como me prometeu, me diga, qual a lembrança mais bonita que você tem de mim? Não tenho muito tempo. Trate logo de pôr a cabeça para funcionar. As festas promovidas por você, eu disse, em que cada noite aparecia lindíssima. Não  despregava meus olhos de você, de seus ombros, de seu colo e de sua pele nacarada. O modo como rodopiava pelo salão, encantadora e o desprezo com que olhava os pretendentes. A minha timidez me impedia de convidá-la para dançar. Você percebia. E para inveja de todos, com seus longos braços brancos, envolvia-me e sussurrava em meu ouvido: “A mocinha não quer mexer os pés?”. Ela mexia o cafezinho, transportada à algazarra. Não - franziu ela a testa - isto é... comum. Tem algum humor, reconheço, mas não pode ser a sua lembrança mais bonita de mim. Não tenha vergonha. Uniu os lábios em um biquinho. Notava-se o batom claro, o contraste com a pele alva, combinando com a discrição do taier.

             Não valeu. Não viajei de tão longe para isto. Quero algo mais pessoal, ela enfatizou. De uma outra vez, em um jantar, com um de seus amantes, você não se lembrará, ele se ausentou da mesa, por um instante. Ríamos bastante sob efeito da champanhe. Quando seu amante retornou à mesa, desconfortável por nos ver tão à vontade, julgou que mantínhamos um caso. Saímos os dois, bêbados, sem dinheiro para o táxi após o pagamento da conta. Caminhamos dois bairros abraçados - à noite sem uma estrela -, perguntávamos a nós mesmos se Dostoiévski não sofria de demência por falar com o casario de São Petersburgo.

            Disso eu não me lembro, ela desfechou. Pode ter acontecido, e se não aconteceu, é uma boa lembrança para somar ao meu inventário íntimo.  Pernas cruzadas. Sentava-se toda vez de modo que pudesse examinar os pés. Exibia os sapatos. Sabia de minha obsessão pelos dedos dos pés. Você ainda usa aliança nos dedos dos pés?, arrisquei. Retirou o sapato, a perna revelou-se coberta por meia-calça fina, respondendo minha curiosidade. Esta última reminiscência foi tão bonita que penso em dispensá-lo da obrigação de entregar outra; porém, sou impertinente e quero ir mais fundo. Talvez tão  longe que não haja volta para nenhum de nós dois. Diga-me, por favor, por que você me desprezou? Nunca a desprezei, repliquei. Sim, desprezou. Esta é a lembrança que você não quer me entregar. A lembrança mais bonita e a mais dolorida, finalizou.

             Toquei a campainha. Ela estava em casa. Perguntei se podia subir. Você está suado. Disputava o Golden Derby? Vá para o banho, ordenou. Atirou-me a toalha, apontando imperativa, sem chance de recusa. O banheiro perfumado, com banheira de louça e água tépida. Saí. Conversamos sobre sua vida amorosa. Era a minha segunda vez em sua residência. Você vestia uma camisola de cor indefinida. Não ligue, meu benzinho, minha produção é apenas para impressionar alguns homens, com outros posso ser eu mesma. Estou bonita? Encabulado, concordei com a cabeça. Você preparou um lanche rápido. Confessei minha inveja dos sujeitos com os quais ela saía. Ciúmes? Deitada na rede da sala, sob fraca iluminação, enlanguescida, ganhava  o contorno de delírio. Por que está me olhando assim? Seu olhar está com um brilho diferente...Você me deseja?

            Acanhado, recolhido em meu silêncio, não respondi.

            É óbvio que sim. Não tem  é coragem. Reconheceu: Você foi o único homem que nunca me pediu nada, não me cobrou nada, apenas me seguiu.  Levantou-se da rede, tirou a camisola. Não desvie o olhar. É sua a minha nudez. Já que você está aqui, é melhor que faça de uma vez. Resisti, não entendi o porquê. O que você está fazendo? Não seja tolo, venha aqui. Eu quero. Abandonei o apartamento. Não contei  nada a ninguém...até agora.

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