497 Expresso Lapa
O 497 faz o trajeto Penha – Cosme Velho. Corta a maior parte dos subúrbios da Zona da Leopoldina. Não carrega apenas os trabalhadores pendulares, em seu deslocamento diários de casa/trabalho/trabalho/casa. Nas noites de quinta a domingo, reserva lugar no que transporta para o amor. Não apenas os jovens que escolhem a Lapa como ponto de encontro para diversão e azaração. Há um público muito mais maduro que também se enfileira. E divide o território com os mais novos.
Todos atravessam a catraca do coletivo. Confiantes, elegantes, vestidos com apuro. Mas com um papo diferente sobre o destino que decifrarão em breve, sobre a região alvo e palco de sua jornada.
Pouco tem em comum suas memórias e as dos mais jovens, pontuando que o bairro em comum que têm como destino, mudou. Os jovens se intrometem na conversa. E, na apuração que fazem sobre a interseção de suas lembranças, percebe-se, talvez, que muito do que o público mais velho carrega é o que se insinua nos rostos dos mais novos.
O público jovem, cativo, acompanha com interesse o relato das antigas, desses novos habitantes do “Planeta Lapa”. Uma das garotas explica o epíteto "pela diversidade de pessoas e histórias" que se encontram por lá.
São onze e meia de noite. O ponto de ônibus apinhado. As meninas em modelos de vestido sumários – quase sempre na cor preta - exibindo meias calças arrastão e saltos altos que desafiariam equilibristas experientes, inadequados ao estado das calçadas dos subúrbios. Ginastas involuntárias porém hábeis, não só se mantém no salto: andam, conversam, e vigiam a chegada do ônibus. Ou participam dos grupos que se formam como ilhotas, para discutir o melhor ponto para se fixar no seu objetivo.
Não querem terminar a noite sem ninguém.
De uma das ruas adjacentes, surge outra turma. As mulheres não exibem as formas de suas concorrentes mais novas, o corpo experimentado revela linhas esbarroadas, todavia não desprovida de uma beleza que interessa aos olhos mais experientes, que não querem e “não tem tempo para ensinar às mais novinhas o modo certo para se namorar”– eufemismo de um dos homens já com cabelo grisalho, para se referir a falta de maturidade sexual das novatas. As que se impressionam com performances rápidas e insatisfatórias e com aparência, “sem valorizar a experiência". Outro completa: “o diabo é sábio, porque é velho”. E não porque é apenas o diabo.
O recado causa irritação nos rapazes que se sentem menosprezados. A impressão é desfeita quando se estabelece entre eles uma conexão que valoriza a troca de informações para o sucesso das paqueras. E verifica-se que a arte da paquera permanece inalterada desde os tempos de Ovídio. Ainda é tempo de ler A Arte de Amar.
As meninas mais novas não compreendem muito o que lhes dizem as mais maduras. O visual delas não destoa das jovens. Em roupas apertadas que valorizam os contornos do corpo, explicam que não se podem valer das mesmas armas para a conquista do que as suas rivais com tudo em cima.
A mais velha delas, é mãe de três filhos e se orgulha da bunda ainda durinha e dos seios que não caíram. Quando vai à padaria pela manhã, costuma vestir "uma camiseta branca bem leve, sem sutiã" e repara que os homens que cruzam com ela pelo caminho não tiram os olhos de seu busto. Elas não sabem o que é isso, somando que é viúva há dezesseis anos e que uma das meninas que está no grupo mais animado é sua filha. Conta que sua filha é que lhe incentivou suas incursões pela Lapa e que não disputam o mesmo bofe, mas carregam um gosto muito semelhante em relação aos homens. E, quando tem dificuldades amorosas, aconselham-se mutuamente sobre o que devem fazer até mesmo terminar a relação. Quando isso acontece, choram durante um ou dois dias. Depois de pranteado o finado – rei morto, rei posto – as duas seguem para o salão de beleza onde procuram recuperar-se das feridas para a próxima batalha na noite do sábado vindouro.
Um dos rapazes diz que “Na verdade, todos nós procuramos mesmo um amor de verdade, alguém para casar”. Esse pensamento não é compartilhado pelo restante do pessoal, especialmente pelos mais velhos que saíram de relações que pareciam ideais e não se concretizaram. A maioria deles discorda sobre "juntar os panos de bunda". Agora para eles é cada um em sua casa.
“É bem melhor assim”, confessa uma das mulheres, que não esconde sobre os perigos de se agir como se quer. Ela se refere as constantes agressões que muitas mulheres sofrem por essa liberalidade e assevera que “não é fácil conhecer alguém mesmo que se conviva com ele durante anos, imagine alguém que você viu apenas uma vez, em uma balada”, apenas para praticar o sexo casual. A este comentário, uma de suas amigas intervém, dissertando sobre a dificuldade que as mulheres têm em praticar sexo casualmente, “porque mulher quando se envolve, pensa em romance”. Para os homens isso é bem resolvido. Para as mulheres isso é um tabu, pela educação e o papel social desempenhado e esperado por nós por todos esses séculos. Muitas não se resignam a esse suposto papel histórico. Sob concordância da patota, uma cospe, enfática, que “muita coisa mudou, e para melhor”.
Prova, lançando com um olhar desejoso para um rapaz sarado que desembarca nas imediações da Rua do Riachuelo.
A viagem está chegando ao fim. Salto no segundo ponto da Henrique Valadares. Antes de me despedir, uma delas, sorridente, abre sua bolsa e diz não estar desprevenida para a noite. E, acrescenta, se o preservativo falhar, retira da bolsa a cartela com a pílula do dia seguinte. Emenda outra que, na sua idade, não pode se ligar aos problemas. Só quer muita felicidade.
“E que felicidade!” - Sorrindo, joga as palavras no ar, espiando de rabo de olho o moreno da camiseta colada ao tórax, dono de uma barriga tanquinho. Parece que vai ser a pedida da noite.
O ônibus vai. Eu fico.
Comentários
Ótimo texto