Exercício - Etnografia Ficcional III

III

“tinha apenas como herança dos saltos uma diferença de uma perna para outra devido a um acidente que o fazia mancar levemente – era quase imperceptível”.

Eu que nunca permaneci em pé, que não venci a lei da gravidade, Acácio tentava em vão descrever sua luta por permanecer cravado em um centro de uma existência, inclinada. Quando nu, em frente ao espelho de corpo inteiro, sentia que algo lhe estava subtraído. Em pé, esticava-se todo, o fêmur estalava junto da bacia, o pé se levantava centímetros do chão, embora a sola o tocasse ainda. Contudo, estava reduzido, infimamente, mas reduzido. A mulher pedia para que não se aborrecesse com isso, um detalhe sem importância. Todavia, não lhe abandonava a idéia de aleijão.

Esboçou a carta inúmeras vezes; Anette tinha ido para a casa de sua mãe em outro subúrbio perto dali. Rememorou que para Leonardo isso não seria uma dificuldade, uma simples carta. O começo descrevia tudo aquilo que ambicionava dizer, porque sabia de sua vida humilhada e aquela sentença resumia acertadamente sua postura, assumida depois de que todos lhe reforçavam o caráter de derrotado, evocando as lembranças ligadas à sua infância, exatamente aquelas referentes às crueldades que cometia por Nádia.

Eu que nunca permaneci de pé. Ele não seria entendido, porque não lhe notavam o defeito físico que logo se converteu em logro moral, impingindo-lhe o hábito de uma tristeza sem remição, uma mancha da qual não conseguia se livrar, nisso, entendia muito bem Leonardo, sabia muito bem que o passado não estava bem resolvido para nenhum dos dois, entretanto, seu companheiro escapava dele através das palavras, fugia para o labirinto que elas formavam, escondia-se atrás da barreira erigidas pelos períodos enfileirados, mesmo que aparentemente desconexos. Acácio não tinha isso. Não era bom com as palavras, apesar de uma vez ou outra, proferir frases interessantes como a escrita por ele naquele momento.

Anette jamais o perdoaria. Os meninos eram muito novos para entender alguma coisa. Passariam por cima da tragédia rapidamente, na juventude talvez lamentassem, se compreendessem suas razões. Isso importava menos. Daquela época, de Nádia e Leonardo, fizera questão de permanecer com a corda. Tinha dias que a esticava no assoalho, equilibrista imaginário, caminhava por ela de uma ponta a outra, lá embaixo um abismo. Outras vezes, enrolava a corda em seus pulsos tão fortemente que o sangue escorria. Na semana passada, pediu à mulher que o amarrasse na viga do telhado, que fizessem amor dessa maneira. A mulher ficou surpresa, mas não condenou o marido pela fantasia. Sentiu felicidade por atendê-lo.

Acácio, não.

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