Exercício - Etnografia Ficcional II

II

“Vigiado por uma mocinha ruiva de patins [A mocinha ruiva é estudante de Serviço Social, em uma universidade particular católica no Rio de Janeiro, mora com a mãe na região da Leopoldina, no conjunto do IAPI, situado na Penha. A mãe é separada do pai há mais de dez anos e é professora primária em escola da região], que tive a impressão de ser a mais enérgica delas.”

A mocinha ruiva desamarrava os patins, sentada no meio - fio. Não vou nem trocar de roupa, falava para sua companheira. O namorado não viera lhe buscar, como combinado; o ônibus àquela hora não rodava para as bandas onde ela morava. Resignada, olhava para um ponto da rua em que as linhas que a formavam juntavam-se. Os patins pendurou-os no pescoço, calçando uma chinela havaiana. Verificou na mochila o cartão de passagem. Sua companheira, cansada, optou por um táxi, torrando parte do dinheiro ganho na noite. Como iria para uma direção contrária à da ruiva, não pode dar carona. A manhã crescia sobre os prédios com rastros de nuvens, os pássaros tagarelavam nas árvores e os trabalhadores faziam filas nos pontos, aguardando pacientes a condução. Os carrinhos dos catadores enchiam de ruídos o ambiente, o cansaço insinuou-se novamente sobre os músculos, lembrou que teria prova na segunda-feira e com um esforço, já que lhe restava tempo até a chegada do ônibus, retirou da mochila uma apostila com o assunto que deveria estudar. Deparou-se com o próprio nome, escrito em uma caligrafia nervosa, Nádia. Esperança. Leu dois, três capítulos, tão imersa que não percebeu a aproximação do coletivo. Embarcou rapidamente, jogou a mochila e a apostila em um canto, apoiou a cabeça no encosto e adormeceu. Durante o trajeto, vítima de sonhos intranqüilos, diria seu autor predileto, acordou sobressaltada e já havia ultrapassado o local onde deveria saltar. Teria que retornar pelo menos dois quarteirões a pé. A mãe estaria de pé, o café na mesa, cumprindo sua obrigação de professora, corrigindo as dezenas de provas dos alunos da escola em que dava aulas, reclamando sozinha pela tarefa que lhe parecia absurda, levando-se em conta o sol lá fora, a relativa juventude, o corpo embora desgastado, ainda atraente. Tinha um cuidado especial com as pernas. Comprava cremes, meias especiais, fazia exercícios para fortificá-las. O magistério não fez despontar varizes excessivas. Nádia entra em casa, beija a mãe, corre para o banheiro, toma um banho e senta-se à mesa para o café. O desjejum é importante, pontuava a mãe. Jogou-se no sofá, ligou a tevê, zapeou pelos canais, procurando algo interessante. A fadiga mais uma vez cavou caminho pelo seu corpo. Dormiu. A mãe percebendo que a filha entregava-se ao sono abandonou seus afazeres e recomeçou de fato aquilo que iniciara pela manhã, revirar os diários de sua filha com uma curiosidade infinita. Lembrava o trabalho que ela dava quando menor, não esquecia as inúmeras vezes em que na escola fora chamada a atenção pelo estranho comportamento de sua filha, não duvidava que aquela fase passasse, mas se preocupava bastante, crendo apenas ser uma rebeldia sem sentido, portanto natural para a idade. Até aquele chamado para uma conversa com a orientadora educacional.

Um homem negro, grandalhão [O negro grandalhão é de Magalhães Bastos, serviu o exército, foi pára-quedista, mora com a mulher e dois filhos. Faz pequenos bicos de segurança em festas e escolta pessoal]

Acácio era amigo de infância de Nádia. Ele mesmo lembrou-se dela quando aquele bico surgiu. Estava casado agora, com dois filhos, tinha servido ao exército, em sua fala, ao Exército Brasileiro, pára-quedista, orgulhava-se do brevete, recordava-se como fora difícil conquistar sua boina vermelha. Nessa época, procurou-me para conversar, e confessou que tinha engravidado Anette. Naturalmente, aconselhei-o, que se a amava, que assumisse a criança e se arrumasse com a garota. Foi o que fez. E não tardou em encomendar outro filho, logo após o primeiro completar seis anos. Acácio saiu do Exército Brasileiro sem profissão, exceto a de pára-quedista, como os classificados não costumam exigir muito esse tipo de profissional, se resolveu valer-se do porte físico e começou a fazer escolta pessoal. No que foi muito bem sucedido. Era um homem grande, não era feio, discreto, tinha apenas como herança dos saltos uma diferença de uma perna para outra devido a um acidente que o fazia mancar levemente – era quase imperceptível. Acácio não se alongava muito em conversas; sua existência não era tão venturosa que precisasse de mais que meia lauda para narrá-la. Em comum, tínhamos Nádia, pelo qual éramos apaixonados em nossa infância e parte da adolescência.

“É sexta-feira. Dois jovens [Marcelo & Sérgio] cumprimentam-se com uma saudação típica para suas idades. Regulam entre dezesseis e dezessete anos. Vestem calça jeans, tênis da moda, cabelo com corte moicano [corte de cabelo indígena americano e de povos de origem celta. Utilizado durante o movimento Punk, fim da década de 70], imitando o ídolo do futebol Neymar, jogador do time do Santos. Acompanho o mais velho que trata logo de me apresentar ao seu amigo mais novo; afastam-se, precisam decidir o que fazer com a minha companhia, o mais novo parece não confiar em mim e demoram em cochichos por uns cinco minutos. Ambos os jovens vem de família constituída tradicionalmente, não são filhos de pais separados, possuem boa cultura média no que diz respeito à faixa etária e se expressam com um vocabulário razoável.”

Marcelo e Sérgio não tinham noção de quem eu fosse. Apenas solidários com minha intenção, aceitaram em me levar na festa. Não sabiam que laços poderiam uni-los à minha história, não sabiam mesmo que Acácio e Nádia não impediriam minha entrada, porque não suspeitavam que os conhecesse; que já fossemos amigos fora daquele espaço e que com freqüência nos encontrávamos. Tudo aquilo era destinado a um trabalho de faculdade. Marcelo era filho do primeiro rapaz que nós hostilizamos, se bem me lembro. Eu não tinha como esquecer o fato, mas, a memória prega peças, por isso não vou asseverar com muita certeza. Quando Nádia me viu acompanhando-os sentiu que o passado, pelo menos para mim, não estava enterrado. Acácio não julgava minhas ações, por estranhas que parecessem; apenas me advertia se eu sabia mesmo o que estava fazendo, se aquilo não podia ser perigoso, um jogo estúpido em que estava me metendo. No fundo, eu me culpava, queria remediar as coisas, ver se o cara estava levando uma vida normal, se havia superado tudo o que lhe fizemos. Isso me atormentava sobremodo. O filho virou adolescente normal. O outro, rapaz, Sérgio, era filho de outra vítima de nossa intolerância, não divergia em nada do diagnóstico do amigo, repetia os mesmos gestos, não se via incomodado por nada, era alheio ao passado do pai. Quando nos separamos, prometi que mandaria para eles o meu relatório sobre a festa e que em outra oportunidade, voltaríamos a nos reunir para um papo mais longo. Dei a eles um nome falso.

“A mãe percebendo que a filha entregava-se ao sono abandonou seus afazeres e recomeçou de fato aquilo que iniciara pela manhã, revirar os diários de sua filha com uma curiosidade infinita. Lembrava o trabalho que ela dava quando menor, não esquecia as inúmeras vezes em que na escola fora chamada a atenção pelo estranho comportamento de sua filha, não duvidava que aquela fase passasse, mas se preocupava bastante, crendo apenas ser uma rebeldia sem sentido, portanto natural para a idade. Até aquele chamado para uma conversa com a orientadora educacional.”

Naquela tarde, estávamos os três sentados, escutando da orientadora educacional um longo sermão. A mãe de Nádia com o pavor no rosto não entendia muito bem o que estava acontecendo, porque foi inteirado do assunto muito por alto, por telefone, portando não acreditava muito nas palavras da orientadora, era um exagero, sem dúvida, sua filha não arquitetara tamanha maldade, não era verdade, sempre fora uma criança muito calma, mas sociável. Trancaram-se por um bom tempo nessa conversa, Nádia não estava surpresa com as lágrimas que a mãe derramava, nem com o terror em seu rosto quando a tomou pela mão e sendo levada para casa, entre soluços, não se apiedou da dor que ela, sua mãe, sentia. Acácio não parava de reclamar pela demora do pai, apesar de adolescentes, não respondíamos pelos nossos atos. Tomaria uma surra e pronto. Dependo mesmo do caso, o pai talvez nem lhe batesse, porque quem se importava com um fresco? O menino estava no pátio recebendo os primeiros socorros, uma ambulância acabou por levá-lo ao hospital, porque os ferimentos eram graves. Minha mãe se recusou mais uma vez a vir à secretária da escola, porque, em suas palavras, eu era um aprendiz de marginal, não valia a pena perder um dia de serviço para ouvir a mesma ladainha sobre minha conduta e educação. Então, um professor era encarregado do castigo, que serviria para me disciplinar. Geralmente eram cópias de livros, capítulos inteiros. O que me deu essa mania pela escrita, embora eu não seja um escritor.

“Nádia entra em casa, beija a mãe, corre para o banheiro, toma um banho e senta-se à mesa para o café. O desjejum é importante, pontuava a mãe. Jogou-se no sofá, ligou a tevê, zapeou pelos canais, procurando algo interessante. A fadiga mais uma vez cavou caminho pelo seu corpo. Dormiu.”

Revirava-se. O corpo doía. Voltou os olhos para a cozinha, a mãe permanecia lá, na correção das provas. Lembrou-se da noite passada, Acácio estava sobressaltado, talvez a visita de Leonardo. Desde que ele havia começado a faculdade de História, não se topavam com a freqüência de antes. Ela também estava nervosa, não sabia direito o que fazer, se deveria cumprimentá-lo ou se isso interferiria no andamento de sua pesquisa etnográfica. As companhias de Leonardo é que a surpreenderam. Nádia conhecia aqueles meninos. Sabia de quem eram filhos. Não protestou, porque ali era um lugar público e não sabia a reação que causaria se redundasse em escândalo sua discussão com Léo e aquele dinheiro acabaria por fazer falta, caso viesse a perdê-lo, por motivos como esse.

“Corte moicano [corte de cabelo indígena americano e de povos de origem celta. Utilizado durante o movimento Punk, fim da década de 70], imitando o ídolo do futebol Neymar”

Ele estava profundamente aterrorizado. Foi difícil amarrá-lo. Pesava bastante. Acácio e eu com o corte inspirado pelo filme Táxi Driver. Puxávamos a corda e suspendíamos o corpo molenga do gordinho. E se o galho da árvore se quebrar? Que se foda, ela é maricas. Essa voz não era nem minha, nem de Acácio; apenas nos ocupávamos de soerguer o gordinho que gritava ao receber as pancadas desferidas por Nádia.

“Que se foda, ela é maricas”

Acácio não entendia a raiva de Nádia dos meninos efeminados. Eu também, não. Apenas cumpríamos o que ela nos mandava fazer. A compensação vinha quando estávamos todos a sós, em sua casa. Pagava nosso silêncio e cooperação com sexo. Advertia-nos que não nos queria de conversa com maricas, senão tudo aquilo terminaria. Isso doía em nós. Acácio e eu não nos atrevíamos.

“Puxávamos a corda e suspendíamos o corpo molenga do gordinho”

Foi no recreio. O gordinho sentia atração pelo Acácio. Eu tinha descido com minha mochila onde estava a corda. Nádia observava-nos. O gordinho logo caiu na conversa de Acácio, que quando me viu, tratou logo de me incluir na jogada. O gordinho ria. Quanto mais gente melhor. A escola tinha desconfiança dele. O tempo que demorava no banheiro com outros garotos, os trejeitos e o modo como andava, denunciava. Ou poderia mesmo ser impressão. Nádia aguardou que fossemos para o terreno atrás do colégio e sabendo bem para onde o levaríamos, logo se juntou a nós.

O gordinho nem teve tempo de arriar as calças. Recebeu um tabefe. Nádia xingava-o . Outro tabefe. Levantou a saia e mostrou a buceta. Eles gostam disso aqui, ó. Bateu nela. Puxou o gordinho pelos cabelos, obrigando-o a cheirar seu sexo. Cheira, seu merda. Não gosta? Quando o gordinho tentou fugir, barramos sua passagem. Nada disso. Enquanto ela não acabar com você, você não vai embora. Ele não se conteve. Retribuiu os xingamentos e já descarregaria uns murros em Nádia, se não nos antecipássemos. Acácio deu-lhe uma rasteira. Eu cobria o filho-da-puta de pontapés.

Cadê a corda, Nádia perguntou.

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