Resenha John Fante Trabalha no Esquimó para Revista Caliban

Obrigado, Luíz Horácio por sua resenha.
JOHN FANTE TRABALHA NO ESQUIMÓ OU A DOR QUE NÃO IMPEDE O SONHO
*Luíz Horácio

John Fante trabalha no esquimó é um livro violento, quase feroz, afronta a indiferença, tão comum em nossos dias novelescos e “biguibrodianos”, seus contos retratam experiências nunca dissociadas do homem. Sejam elas cruéis, sejam elas oníricas. A dor não impede o sonho. É isso o livro de Mariel, sonho. O sonho que não queremos que chegue ao seu final e o pesadelo rotineiro de quem, por exemplo, vive na rua e cuja vida está por uma garrafa de álcool e um pau de fósforo. Estimado leitor, o cenário das histórias não é nada colorido, a trilha sonora não inspira amor, paixão, tampouco compaixão; mas o autor não se ocupa apenas em passear por esses escombros humanos, Mariel os apresenta como denúncia, não se trata apenas do esfacelamento da dignidade carioca, mas da que se alastra por qualquer parte onde se possa encontrar, em convívio permanente, uma centena de seres humanos. Estará instituída a degradação, a burla, a opressão, a seguir virá o ato da segregação e na cena final se dará o crime, assassinato, roubo, estupro. Triste é saber que esse espetáculo jamais sairá de cartaz.

O sonho que Mariel encerra nas 76 páginas de John Fante trabalha no esquimó é um sonho barulhento, tem sempre alguém sobre o fio da navalha, alguém que será vitimado pela afiada e inevitável lâmina;o homem que salta do ônibus, marcado para morrer, evita o som do revólver do matador , opta pelo som do corpo batendo na estrada. A gorda implorando para poder comprar companhia, o barulho das bolinhas de papel arremessadas pelo homem que vendia futuros ou o som de um homem sendo torturado.

Importante ressaltar que Mariel, feito poucos, consegue harmonizar o literário com o não literário, sua escrita assim como seus personagens, busca equilíbrio sobre um fio de arame farpado, lá em, baixo o abismo incandescentes. Sobrevive a coragem, a ousadia, os pontos vulneráveis, sim, eles existem, é a fragilidade que exige coragem caso você não saiba; e talvez o maior deles seja exatamente essa proximidade do real. E a realidade nem sempre é uma caricia, no mais das vezes, quer nas ruas, quer na literatura, é pura agressividade. Com precisão e sensibilidade de quem observa a vida com inconformismo, Mariel criou uma mistura instigante, soube cativar o leitor, combinou ingredientes estranhos , o resultado não é doce, tampouco chega a ser acido ou azedo, no entanto, não evita o incômodo, a náusea por sermos tão parecidos com certos personagens de Mariel, este ácido flaneur carioca.

Sugiro, atento leitor, que você examine algumas fotos do midiático e oportunista Sebastião Salgado e depois leia John Fante trabalha no esquimó. A forma inversa também será aceita, não alterará o produto. A certeza do equívoco da máxima tosca que diz uma imagem valer mais que mil palavras. Feita essa experiência você saberá a diferença exata entre sensibilidade beirando a ingenuidade e oportunismo vislumbrando cifras.Altas cifras.

Mariel sua obra são pura honestidade e denúncia de nossa precariedade.

Seus contos ora são narrados na primeira pessoa, ora na terceira, a variação não implica em perda de intensidade, em John Fante trabalha no esquimó , o leitor observa uma fotografia do Rio de Janeiro, mas o autor evita os cartões postais, não são obras humanas; o que interessa, a matéria prima dos contos de Mariel é o homem, suas atrocidades, a barbárie envernizada, e uma dose mínima de ilusão .

Recomeda-se bater os ingredientes, servir em copo alto e sorver com o canudo da ironia, aspecto presente de forma sutil na maioria dos contos de Mariel. A abertura com Todos os homens são iguais onde o ator Charlton Eston, interpela o presidente de uma organização, protesta contra o espancamento de um homem negro. Em determinado momento o ator recheia seus argumentos apoderando-se de um rifle. Cabe dizer que o ator, o real, é um dos mais fortes defensores do porte de arma aos americanos.

“Atiraria em homens como aquele com um rifle deste tipo? Só porque desejam justiça, que sejam tratados como iguais e não como gado.”

O auto-ironia também está presente no conto Orfandade onde o fazer literário é despido de qualquer traço de um suposto glamour. “Quanto ao futuro e a tal unidade de que ele me perguntava, eu disse não me preocupar muito sobre isso, porque todas as coisas ao final falam de uma mesma observação, insistem em se escrever sob formas diferentes, às vezes frágeis, então descartadas, outras, fortes, aí aproveitadas mais na frente em uma idéia que a comporte em seu bojo.”

Antes de encerrar peço sua permissão, paciente leitor, nós, críticos, resenhistas nunca deixamos de ser ranhetas, e mesmo frente a obras contundentes, de extrema relevância, como este livro de Mariel, conseguimos encontrar problemas e não conseguimos desprezá-luz, mesmo que quase insignificantes, como no caso. Acontece que tais problemas podem vir a contaminar uma obra e por vezes infesta de modo a não permitir cura, uma promissora carreira. Tais problemas ocorrem nos contos Jonas, a baleia e em Por mil demônios. Nesses momentos o autor abandona o cenário por onde se movimenta com elegância e conhecimento e envereda por terras avessas ao seu projeto estético. O fantástico tornou os contos pueris. A baleia de Mariel remete ao inseto kafkiano, com prejuízo para o autor carioca, o demônio, por sua vez, repousava sobre um ombro e carregava em seu ombro um homúnculo, essa duplicidade do inesperado diluiu o impacto, tornou o conto circular. Mas, como alertei, isso também pode ser encarado como ranhetice de critico. Desconsidere se preferir, generoso leitor.

Aspecto bastante louvável é a coragem de Mariel ao remar contra a corrente do personalismo, do individualismo ou da variação romantismo edulcorado e sexo. John Fante trabalha no esquimó traz abordagens políticas, sociológicas, antropológicas, é quixotesco, não é pejorativo não, apressado leitor, tem a ver com a obra máxima Dom Quixote e é baudelairiano, em sua poesia cortante e no passeio critico pela cidade.

Mariel não foi nada modesto. Conseguiu dar cor à realidade e a solidão que ela encerra. Sorte nossa, privilegiado leitor.

Luíz Horácio
Jornalista, escritor, autor dos romances Perciliana e o pássaro com alma de cão, ed.Conex.2006 e Nenhum pássaro no céu, ed. Fábrica de Leitura, 2008. Professor de Literatura, mestrando em Letras

Comentários

ideiasaderiva disse…
fiquei até com vontade de ler o livro de novo... acho que não entendi alguma coisa... rs. abraço.

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