Sonho - 30 de Março

Devia ser este o sonho. Eu pouco me lembro. Mas devia ser do modo inusitado. Minha filha crescida subindo aflita ao meu apartamento. Como sei que era minha filha? Ora, a pinta em sua bochecha. Aflita, me pedia para sentar. Dirigiu-se até a cozinha. Ouvi o barulho de uma colher mexendo em um copo. Voltava a minha filha. Copo de água na mão. Pediu-me que ficasse calmo. As mãos trêmulas. Os olhos parecendo sair das órbitas. Retribui o pedido. Levantei-me para ela se sentasse. Eu estava velho. Não o bastante para ter dificuldade em me mexer. Meu corpo parecia ágil. Era de fato ágil. Meus cabelos embranqueciam-se. Minha pela tinha uma cor passada. Eu estava velho. O computador ligado. Escrevia sei lá o quê. O cursor interrompido piscando. Como a notícia que minha filha me trazia. Devia ser um sonho. A última vez que conversei com minha mulher sobre minha filha, ela me disse: “Casou-se com um estrangeiro. Mora fora.”. Perguntei: “Onde?”. Na França. Lembro que liguei para um amigo que frequentemente estava por lá para perguntar-lhe sobre o bairro. Tive um conforto grande quando soube que o lugar era bom realmente. Quando conheci o seu marido, um sábado, o aniversário dessa vez era o de minha mulher. Meus filhos se revezavam a dançar com ela. Gracejavam as demais visitas. Os meus olhos estavam fixados no cavalheiro que acompanhava a minha filha. Era alto, branco, cabelos aloirados. Tinha olhos azuis profundos. Apertou-me as mãos. O aperto de mão quente, caloroso e forte. Meus filhos – Amim Caetano e João – não demoraram a integrá-lo à alegria da festa. Minha mulher estava vestida lindamente. Rodopiava no colo de Amim. Minha filha com olhos de constelação me segredou: “É o homem da minha vida”. Soprou-me dele, o escolhido, o nome o vento daquela tarde. Agora ela estava ali inquieta. Não sabia para onde olhar. As mãos não encontravam sossego. “Pai”. Tanta dor em uma única palavra. Era a minha filha. A mesma pequenina com medo dos fantasmas que eu inventava. “A mãe”. Teve dificuldade em continuar. Não conseguia me comunicar a ausência que se insinuava em seu corpo. O desespero desenhava-se lentamente nas palavras. Devia ser um sonho. Eu já supunha, através do relato fechado, a sombra que se aproximava. Meu coração contraiu-se. Eu pouco me lembro. Não era esse o trato. Deus não me deu ouvidos. Por que naquela manhã? Comprando flores? Não tinha o direito. Disse a Ele que estaria sempre à disposição, me custaria menos levar meu corpo cansado. Ele não me deu ouvidos. Caprichoso. Meus filhos chegam chorando. Amim esta inconsolável. Só saber dizer: ela está no meu nome pai. Todos vocês estão. João não consegue parar de proferir catástrofes aos céus. Minha filha agora é amparada pelo marido. Diminuo. Achatado pela parede de silêncio que me rodeia. Afasto as fotografias do aparador. Ela está lá, minha mulher, bonita. Vestida como naquele primeiro dia. Deus trapaceou, meu filho custa a entender, trapaceou. Por que não quis levar meu corpo cansado? Por que preferiu a ela? Os outros doentes da rua, por que não os escolheu? Se ela estivesse aqui não me deixaria cometer uma heresia dessas. Bateria na minha boca. Agora aguardo a ansiosa visita. Tenha o rosto que for. Não me importa. Se dura ou caroável. O poeta me empresta indignação e acolhimento em seus versos. A casa está arrumada. A mesa está posta. Sim, a vida não passa de um sonho. Tudo isso não passará do intervalo entre essa noite e outra. Quando voltaremos a dormir. O sonho terá sua dura continuidade. Até que alguém nos conte baixo ao ouvido, como acalanto, também é chegada a nossa hora.

Comentários

AUREA BEART disse…
Quando isso acontecer, cuide deles. Com a razão e o coração. Como eu faria.

Só isso. Te amo!!!

Bjs

Aurea

Postagens mais visitadas deste blog

Iberê

O caso Alexandre Soares Silva

Na Pequena Área