Mistérios do livro Linha de Recuo

Até agora nenhum leitor me escreveu sobre determinados contos do meu primeiro livro "Linha de Recuo". Resolvi esclarecer com quais autores e textos alguns dos contos - prefiro narrativas - mantinham diálogo. O primeiro que será postado aqui será Rinha. Neste conto a minha pretensão se estabeleceu em conversar com um texto de Contos de Aprendiz, de Carlos Drummond de Andrade, intitulado Meu Companheiro.




Rinha


um conto de Mariel Reis

A aguardente no balcão. Jonas conversa. A cabeça oscila de um lado a outro como se fosse tombar. As palavras saem engroladas. A fala áspera, entrecortada de palavrões, vai enchendo o ambiente. O dono do bar despeja outra vez a branquinha no copo. As entranhas remexem-se a cada gole. Não se confia em mulher, eu já disse. Homem que confia em mulher é trouxa. E outra talagada. Conta aí, Jonas. Já digo. A puta me fez uma tremenda falseta. Vocês nunca vão entender. Nunca. Sebastiana, mulher de Jonas, entra na venda. Um quilo de arroz. Pode pôr na conta desse pau d’água aí. Jonas levanta o corpo da mesa aos solavancos. O ambiente empesta-se de suas pragas. A mulher sai do armazém sem olhá-lo. Puta, isso é que ela é. Conta aí, Jonas. Vocês não vão crer no que fez esta desgramada. Num domingo de um ano destes, saindo de casa para o trabalho, encontrei o compadre Josemar animado. Numa animação suspeita, se eu o não conhecesse bem. Dizia que eu devia vir. Que a coisa ia pegar fogo mais tarde, pros lados do Tamba. E a minha curiosidade só aumentava. No trabalho minha cabeça não saía desse negócio do compadre Josemar. E no fim do expediente me arranquei pro Tamba. Lá o negócio esquentava. Cada homem que chegava trazia um embrulho embaixo do braço. Do embrulho saíam cabeças de galo. Uma mais enfezada que a outra. Só que não é isso ainda. A briga de galos da noite. Os homens pareciam endemoninhados. Gritando e urrando. Os animais se esporeando. Afinal, meu compadre Josemar me abraçou emocionado, trazendo nos braços o vencedor. O galo com as penas cheias de sangue. Jonas, meu camarada, vou lhe dar um presente assim que chegar lá em casa. E Josemar me deu. O frangote era desajeitado. Mas bonito que só. Cheio de elegância. Posso treiná-lo para quando ficar mais velho. Pra encher de cacete os outros franguinhos da região. Que nem o pai, um vencedor nato. E apontou prum canto onde estava o galo campeão. Embrulhei o bichinho no jornal e piquei pra casa. Lá a mulher me esperava. No portão anunciei a novidade. Sebastiana achou engraçado. Por que não um cachorro, homem? E fechando a cara se enfiou no quarto. Dia e noite eu cuidava do molecote. O melhor milho. Fazia correr em torno do terreiro pro bicho fortalecer os pés. E o bico era afiado na pedra de amolar. Mas de briga mesmo, eu não queria que ele fosse. Era mais uma companhia pra mim. Sebastiana não pegava filho. E aquele franguinho era como se fosse o meu. Só que o diabo não quer a felicidade de ninguém. E tampouco iria querer a minha. Se mudou para minha rua uma dona. Sozinha. Sem homem. E toda vez que eu passava, cumprimentava. Ela com aqueles olhões me lambendo todo. E Sebastiana de longe, espiando. À noite, discussão. Todo tipo de aporrinhamento. E lá ia eu pra rua com meu galinho. Vê-lo estripuliando era minha felicidade. A tal dona, um dia, deu com as costas lá em casa. Sebastiana desconfiada. A intimidade chegou depressa entre as duas. Sebastiana queria era arrancar dela a confissão de que eu adulterava só porque a moça me dava uma atenção terna por causa do meu bichinho. Sebastiana prometendo que iria aprontar uma comigo. Que eu colocasse as barbas de molho. Castigo vem a tartaruga e não a cavalo. E veio. Saí pra trabalhar na segunda. Amarrei o galinho no terreiro. Me despedi dele. Dei um beijo em Sebastiana e recomendei que cuidasse bem do bicho. Quando cheguei a moça ria na cozinha com Sebastiana. Fazendo receita e assuntando coisas de mulher. Sai daqui homem. E no quintal nem sinal do meu frangote. O cheiro forte vindo do forno. Sebastiana assava alguma coisa. A moça veio pra varanda pra perguntar sobre o franguinho. Como ele estava e coisa assim. Falei que ele tinha fugido. O barbante arrebentado. O que saiu do forno foi porco. Ao contrário do que eu pensava. Ela não me daria de comer o meu pobre bichinho. Se fizesse maldade, seria coisa pior. Ela não perdoava a atenção da moça nova pra mim. E o ciúme é uma serpente que abocanha calcanhar. Os dias passaram e já me acostumava com a ausência do meu menino. Sebastiana zombava da minha saudade. Josemar me perguntava do desinfeliz. Eu dava sempre desculpa. Até que disse que tinha morrido. Josemar lamentou e nunca mais me deu cria nenhuma. Espalhou que eu tinha mão ruim. Dinzinho que me esclareceu. Disse: compadre sabe que não sou de envenenar casamento de ninguém. Mas sei o que aconteceu com seu filho. E desfiou que viu Sebastiana ir na direção do rio com um embrulho. Toda vez o embrulho escapulia dela. E ela corria atrás como se estivesse vivo. Eu pescava por ali e vi Sebastiana torcer o pescoço do desinfeliz. Fui pra casa. E dei surra na mulher. Chamei ela de figueira brava. Busquei o corpo do meu menino na beira do rio e dei sepultura decente pra ele. Voltei pra casa sufocado de raiva. A garganta inchando, os olhos vermelhos. E fiz isso com Sebastiana, pra ela nunca mais abusar de inocentes. Quando Sebastiana saiu do armazém todos viram que ela mancava. Os pés enfaixados. Tirei três dedos dela. Pouco diante do que perdi. Um filho, uma vida. E tornou a beber a cachaça. E tornou a empestar o ambiente com os palavrões. A vida não pode ser esse cadinho de desgraça, pode? Perguntava sem querer resposta.

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