Leon Tolstoi no Céu?

A psicografia de determinados autores é algo arriscado. Primeiro, não há certeza real se é mesmo o autor que se apresenta para escrever centenas de páginas, porque se alguém tem esta certeza é o médium e não pode transmiti-la a outrem sem o argumento de que se deve acreditar, porque, para se defender, utiliza o número de informações recebidas, lembranças que somente o escritor morto teria e construções que na maioria das vezes excedem a educação do médium, sendo alguns mesmo semi-analfabetos. O que garantiria a isenção do fenômeno.

Isto não é um juízo sobre o valor dessas transmissões, se são de caráter verdadeiro ou falso pouco importa. O que preocupa é a lástima de ler um autor russo, por exemplo, como Leão Tolstoi que nada tem a ver com aquele que em vida, ou se preferirem, quando encarnado, nos deu obras do porte de Ressurreição, Anna Karenina e outros contos maravilhosos. O meu comentário repousa sobre uma constatação, depois de lido um relato psicografado através de uma médium sobre o renomado autor russo, alegando que aquele texto seria de sua autoria – porque o livro se chamava Leon Tolstoi por ele mesmo – narrando a experiência de sua chegada ao outro lado da vida, me deparei com um escritor quase imbecilizado, como se esses assuntos nunca tivessem constituído preocupação sua quando vivo. Tudo para ele era motivo de admiração e estupefato como um colegial que descobre salas secretas em sua escola e nelas livros raros proibidos.


O que é um contra – senso, porque Tolstoi passou parte de sua existência dedicando-se a descobrir sobre essa outra vida, levando-se a desistir de sua posição de nobre, professando um ideal cristico de pureza tão assustadora que os próprios familiares pensaram em interditá-lo, isso demonstra que a vida espiritual era uma ambição conhecida por esse escritor, escrevendo inclusive contos espirituais, imbuídos de uma moral edificante, usados na educação dos mujiques de sua propriedade em uma escola fundada por ele onde seus familiares participavam dando aulas.


O livro psicografado mostra Tolstoi imbecilizado, desfila um autor leigo,que só tivesse desses fatos uma mera idéia e não o escritor que se lançou em uma busca assustadora da procura de sua essência. Portanto, esse livro, Leon Tolstoi por ele mesmo, não merece nossa atenção e respeito, por se tratar, em minha visão, da percepção distorcida desse aparelho – a médium – a respeito do autor russo. Se não existe coerência nas idéias do livro, outro terreno onde tudo desanda é a escrita. E nisso não há aquele que tenha lido uma página desse autor que não discorde de que ali o que está escrito não pertence de maneira nenhuma a Leon Tolstoi pelos inúmeros clichês e lugares comuns espalhados no texto.

Quando Tolstoi é psicografado ou é um imbecil alegre, um santo que se desviou de seu caminho, como a um louco que por não poder contar com o juízo, é absolvido por seus juízes, sendo encaminhado para uma reeducação; ou é um sábio, empolado, cheio de certezas acerca de si mesmo e do mundo, vaticinando sobre o que existe além como um doutor que pudesse demonstrar as camadas de tecido que compõem o universo, nomeando a cada uma, mostrando nossa ignorância, nossa pequenez. Portanto, é difícil acreditar que se trata realmente do autor russo, mas não se pode negar que é um feito e tanto estar por aí, pelo Brasil, espalhando suas sementes, florescendo através de nossos médiuns uma figura tão ilustre e respeitada, mesmo sendo esculhambado em sua sintaxe.

Comentários

Anônimo disse…
Mariel, só pra constar leia essa entrevista do Lobo Antunes é de fim do ano passado:
http://aeiou.visao.pt/Actualidade/Cultura/Pages/LoboAntunesementrevista.aspx
principalmente o trecho:
Depois da operação, foi difícil voltar a escrever?
Muito difícil. Não era capaz, cansava-me. A seguir à operação, nem sequer escrevia. Estava sentado numa cadeira, sem ler, sem fazer nada, a olhar para a parede. Estive quase dois meses assim. Não tinha nada dentro.

Tinha um romance começado?
Sim, tinha começado a escrevê-lo seis ou sete meses antes. E, como nunca tinha feito uma interrupção, só me perguntava: será que sou capaz de retomar o livro? Depois, devagar, comecei a aproximar-me dele, sem lhe tocar, sem lhe tocar mesmo. Tinha ficado a meio de um capítulo, li o último parágrafo e - é curioso - o livro continuou a sair. É muito estranho porque eu costumo demorar mais de um ano a fazer a primeira versão e, quando chego ao fim, já mal me lembro do princípio. Releio e tudo aquilo faz sentido, tudo aquilo está certo. É uma espécie de trabalho interior que nada tem a ver comigo. Ou melhor: tem a ver comigo, eu não sei é de que parte de dentro de mim é que aquilo vem. Acho que agora estou a escrever como nunca escrevi. Falam muito no Manual dos Inquisidores, mas julgo que foi a partir de Ontem Não te Vi em Babilónia que a escrita começou a ganhar uma densidade, uma espessura, uma força que antes não tinha. Não me importa se me lêem porque escrevo para a eternidade? Claro que me importa, claro que quero que me leiam. Há coisas que já não faço.




Dutra
ideiasaderiva disse…
Fala, Mariel. Independente do meu doce ateísmo, que admite deus, qualquer explicação ligada a psicografia - e sempre de um gênio - me incomoda profundamente. Incomoda ao ponto de achar que debocham de mim.
É algo como "se você escreve porque o próprio bardo entrou em você, guarde isto pra você ou entre em um concurso de textos kardecistas - por incrível que pareça, não estou sendo desrespeitoso.
Sabemos que a grande literatura reverbera, ela se continua nos corpos com os quais se comunica. Com esta reverberação construí alguns textos que chamo de "revoozeios". Gosto muito destes textos; mas, daí, chegar a dizer que é o próprio Guimarães Rosa que os escreve vai um cachaçada que eu ainda não tomei...
A única questão que me angustia é o desespero de tentar ler tudo - inclusive, os novos - e encontrar coisas assim...
É triste. Não tenho tempo sobrando... quando conversamos, percebo o mar vazio que preciso encher usando copinhos de café (sabe a grande literatura do arzebaijão? pois é, eu não sei).
Assusta-me, em algumas considerações suas, as grande frases das quais somos dependentes do tipo "um dos maiores livros escritos na atualidade"... me parece muito lulático...
um abraço
max

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