Camisa Limpa

Os fumos de literatura são as ervas daninhas do canteiro do escritor; tão siglo diecinueve minha sentença que julgo apertar as mãos de Lope de Vega que por um tempo, não muito curto, cismei ser alcunha de meu barbeiro que também já encarnara Sevilha, não a do poeta espanhol, mas a de outro, um pernambucano, o tal João Cabral que, na quadrilha, ali no imbróglio, fez meu barbeiro retorcer os bigodes para ambos os senhores cuja comparação parecia não lhe ter agradado muito. 

A minha peroração, incompreendida, devido a reles companhia no salão, não sofria admoestação alguma pelos circunstantes que julgavam ter diante de si um caso mais de loucura do que do contrário, porque através das ondas sonoras do velho rádio acoplado ao jaleco de meu anfitrião, o programa Patrulha da Cidade estrondava os crimes mais cabeludos, com toda dublagem caricata e sonoplastia necessárias para o realismo da cousa. Meti-me a besta, enfileirei diante daqueles filisteus alguma literatura menos alta, mas, ainda, literatura. 

Não, não zombaram; permaneceram calados, enquanto eu, altissonante, reproduzia, mal e mal, trechos do Elixir do Pajé, de Bernardo Guimarães, que eletrizou a plateia logo em sua introdução Que tens, Caralho... Aquilo era o Navio Negreiro daqueles homens...Silenciei após uma dúzia de versos, circunspecto passei em revista a todos – a estupefação estampada nos olhos vidrados, explodiu em congratulações É isso que é poesia, encorajavam-me aqueles que anteriormente não ligavam a mínima a Lope de Vega...

Quando meu pouco cabelo foi arranjado, desarranchei da cadeira, paguei o devido ao meu barbeiro que, em surdina, comentou O tal Lopes é chatinho, mas o Guima é bem boca suja. O meu estabelecimento exige respeito. Melhor o tédio do que a imoralidade. Não cri. Retirei-me, não sem reprová-lo, ameaçando-lhe de abandono. Meu barbeiro, paciente, escutava minhas imprecações, anotando, no caderninho, outro pendura.

Se não me quiser pagar, tudo bem; mas pelo menos me deixa escolher a porra da poesia, emendou quando já me tinha distante. Num átimo, comi meu pão tão amargo, olhei aos céus e perguntei Deus, Shakespeare passou por isso?; antes me tivesse calado, porque em seguida, em resposta, uma pomba cagou-me a última camisa limpa.



Fonte da Imagem: Google.

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