São Paulo em Chamas




A televisão noticiava os distúrbios violentos em São Paulo. A reportagem limitava-se em mostrar a premeditação dos traficantes ao atear fogo em um coletivo. O flagrante de uma das câmeras instaladas dentro perímetro urbano da cidade acompanhava a chegada dos bandidos. Uns após os outros enfileirados à margem da estrada, por onde o ônibus passaria. Quando o avistaram e realizaram a abordagem para incendiá-lo, a ação orquestrada pelos marginais, duplicada pelas câmeras – a primeira, responsável pela segurança do perímetro urbano e a segunda, pertencente a emissora de tevê que cobria as tensões no território paulista – transformaram o que era exibido em uma falsificação, como se a ação se passasse em um filme mostrado em um horário inapropriado dentro do restaurante no centro do Rio de Janeiro.


 
Toda ação transcorrida assemelhava-se a um odioso happening executado sem o consentimento dos demais participantes. A marcha dos meliantes ao encostamento da rodovia; o veículo abordado, o incêndio e a visão de um homem desesperado para salvar-se não transmitiam uma sensação de realidade, não comunicavam ao público que assistia ao telejornal a convincente propriedade de que tudo aquilo tinha referencial dentro da realidade e, anestesiados, interrogavam com os olhos espremidos o televisor. As explicações do governador e das autoridades não convenciam; especialistas em segurança não diminuíam a desconfiança de que tudo aquilo não fosse uma farsa rodada em uma das maiores capitais do país. O homem ao meu lado, no restaurante, não parava de tagarelar de que aquilo era uma peça publicitária de mais filme dirigido por José Padilha ou Fernando Meirelles.


 
A mocinha que o acompanhava, comia um prato bastante frugal, não descartava que fosse peça publicitária, mas indicava outro caminho possível para a interpretação dos fatos dispostos naquela tarde, aquilo só poderia ser vídeo-arte. E elencou Tungas, Barrios e outros para a justificativa de sua colocação. Aquilo poderia significar a degenerescência do corpo nacional, a violência real sendo a corporificação da violência simbólica a que todos estamos submetidos. Outro jovem, ligado ao universo cultural de São Paulo, arriscou que aquilo seria outra das loucuras do Zé Celso e atribuiu a reportagem como desdobramento potencializado do teatro da crueldade. Ali, somos todos açoitados para a descoberta de uma verdade maior que nós, para a libertação e purificação de nosso corpo esmagado pela lógica objetivista do capitalismo, serializado e desconectado do Outro. Era um religamento brutal a nossa própria essência.



A dona do restaurante não desgrudava os olhos um só instante do televisor. E em meio ao tiroteio intelectual, esforçou-se para abrir caminho para sua tese. Não é apenas violência gratuita ou casual, parece que ela quer significar mais do que quer parecer. Não duvido que os atores sociais envolvidos tenham consciência de sua atuação, mesmo que ela se findasse naquele ato. Um velhinho que pagava a conta observava com rabo de olho a televisão e peremptório disse: Não acredito na tevê. A sua descrença trouxe certo alívio, mas apenas para os ingênuos. No caminho de volta para o escritório uma única frase me atordoava o que ela quer significar mais do que quer parecer?



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