Exercício

As aulas de hidroginástica e de esteira intercalavam-se. Meu condicionamento físico não era dos melhores – o máximo de esforço a que me obrigava era subir escadas e descê-las, fazer caminhadas até o ponto de ônibus e reduzir a ingestão de refrigerante, eu que nunca gostei de água. Essas pequenas atitudes evitaram o meu vexame completo; se me julgava uma negação nos exercícios físicos, porque não tinha outro parâmetro além de mim, quando vi os outros executivos barrigudos e estafados da primeira bateria de exercícios, já havia me consolado. Me convenci de que tomaria por rotina a obrigatoriedade de uma atividade física.

A surpresa, pelo menos para mim, ficou por conta da aula de meditação. A professora era uma jovem muito bonita, com uma cor acentuada de pele, olhos amendoados, braços longos e delicados ligados a um tronco bem constituído, com seios pequenos. Dona de um ventre liso e abaulado, como o interior de uma canoa, que fazia questão de movimentar ritmicamente. As pernas acompanhavam as proporções dos braços, vazando o tecido esgazeado com o qual costumava a se vestir. Concluía-se em pés formosos, com dedos enfeitados por pequenas jóias. Os cabelos, negros e lisos, escorriam pelas costas como uma pequena cascata que terminasse junto das espáduas, ligando-se a linha da coluna entrevista, enquanto seu corpo ondulava de um lado para o outro da sala.

Ela dançava pelo salão espelhado e não se importava em ser observada. Olhei em volta e não havia mais ninguém. A vibração de seu corpo, os membros que serpenteavam para além do tecido e o movimento dos seus olhos, tudo hipnótico. Eu estava ali, num daqueles salões suntuosos, típicos dos palácios indianos. Nada sugeria que estávamos em uma ordinária academia em Copacabana, entre a Figueiredo Magalhães e a Siqueira Campos.

Depois de certo tempo, não sei ao certo quanto, ela virou-se em minha direção. Sem abandonar os movimentos rítmicos em que estava envolvida, mira o centro do meu corpo. Me puxa para acompanhá-la em sua dança lânguida e sensual. Desajeitado, não resisto ao apelo e me esforço ao máximo para dar conta de toda aquela mixórdia. Eu não passava de um executivo acima do peso, sem convicção nenhuma, além daquela de manter meu emprego e recuperar a velha forma. E não via a hora de tudo aquilo acabar. Meus oito quilos estavam me custando mais caro do que pensava. O que meus amigos pensariam, a meu respeito, se me vissem dançando? O calor da professora estava tão próximo, que me contagiava. Talvez, por isso, não me importasse se fosse flagrado. Meus olhos não se desviavam dos dela; ela sorria me incentivando, corrigindo minhas posturas, apoiando-se nos meus quadris para recolocá-lo no ritmo. Seus lábios murmuravam palavras de contentamento com meu desempenho, não me era possível deixar de mirá-los. Uma sineta tocou. Indicava o final da aula.

Ela me confirmou que eu era o seu único aluno.

Passava pela esteira ou pela hidroginástica e não via a hora de minha aula de dança indiana. A professora havia substituído a meditação pela dança e acreditava que o resultado seria o mesmo. E lá estávamos nós, embaraçados por aqueles movimentos - toda nossa consciência envolvida por aquele fluxo interminável de coreografias em que se fundia um jogo de atração amorosa. Meus olhos passeavam por seu busto e linhas imaginárias constituíam-se até o umbigo, suas mãos colavam-se ao meu rosto e seus olhos tinham o brilho de uma jóia.

Nossos movimentos impressionavam a todos que cruzavam o corredor da academia. O novato está mesmo empolgado – comentários como esse se tornavam comuns. Ela não se importava com os boatos, não tinha ouvidos senão para a música celestial que eletrizava os seus músculos e os comandava através dos sinais perceptíveis em seu corpo. E transmitiam-se ao meu corpo por aquele olhar dela – duas serpentes, esquis sob meus pés, para me atirarem no abismo. Envolveu-me em um cálido abraço, sua boca sussurrou ao meu pescoço, as palavras fragmentaram-se em meus ouvidos. Era quase como escutar: toma-me.

Estremeci.

Repassei-a para a minha frente, obedecendo aos movimentos combinados da dança, minha respiração descompassada, minhas mãos sujas de delírio tomaram seu rosto. Aproximei-me. E o calor intenso apoderou-se como se me aproximasse de uma fogueira. Não resisti, em cinzas, vi que me havia queimado e meus lábios rezavam com os dela uma mesma prece. Tínhamos nos beijado.

Um menino, ela resfolegou, porque me ver invadido pela vergonha. Retribuiu-me o beijo.

A aula estava terminada.

Repetíamos centenas de vezes aqueles mesmos movimentos. Até que estejam incorporados, ela me dizia. Voltarei para Nova Déli, o hálito quente desprendeu-se de seu íntimo, a confissão desconcertante, desconfortou-me. Vacilei em segui-la nos passos ensaiados tantas vezes e estaquei no salão. Retomei a postura e a contemplei, sem proferir palavra. Minha vida está lá, meus familiares e minha luta. Estranhei sua afirmação. Ela, cansada, foi em direção à bolsa e dela retirou um jornal. A notícia de uma jovem estuprada em um coletivo descrita gerava debate entre as autoridades, levantei meus olhos para ela que se desviou deles. Dobrou o jornal e o guardou. Desfez-se do embaraço, levantando-se célere para trocar a música.


Até que estejam tão incorporados que seja impossível distingui-los de nossos gestos, sentenciou. E repetimos outras centenas de vezes aqueles mesmos movimentos, sendo, em suma, dissolvidos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Iberê

EXERCÍCIO

O caso Alexandre Soares Silva