LEIA: RESENHA N' O BULE - VIDA CACHORRA
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http://www.o-bule.com/2011/09/uma-narrativa-feita-estocadas.html
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Uma narrativa feita a estocadas
Vida Cachorra (contos)
Autor: Mariel Reis
77 páginas
Usina de Letras
Por Geraldo Lima
A literatura, quanto mais faca de gume afiado, mais penetra fundo os desvãos da mente. Nesse caso, nos desloca, nos tira do eixo de comodismo, de alienação, de satisfação garantida, e nos obriga a reorientar nossos sentidos. Essa é a literatura que faz com que o ser ultrapasse os limites impostos pelas convenções sociais e desfralde a bandeira da liberdade. É ela que expõe tanto as gangrenas da alma quanto as mazelas sociais. É movimento de dentro pra fora, e vice-versa. É choque. É desconforto. É clarão que ilumina e cega ao mesmo tempo.
É nesse patamar de potencialidade literária que se situa a narrativa de Mariel Reis. Refiro-me ao seu Vida cachorra, livro de contos publicado pela Usina das Letras, em 2010. O volume é composto de 12 contos relativamente curtos, alguns, inclusive, podem ser classificados como minicontos. Cito, como exemplo, Ao modo de Dalton Trevisan, uma verdadeira cápsula de erotismo e agilidade narrativa. São histórias pontuadas pela violência, pelo sexo explícito, pelo grotesco e pela miséria. São petardos narrativos que nos atingem em cheio e nos deixam incomodados. A recepção do leitor nunca será, com certeza, tranquila, neutra, pois, no universo em que transitam os personagens de Mariel Reis, a vida já tocou o seu limite.
Há uma variedade de temas em Vida cachorra, mas, em quase todas as histórias, a violência está presente. Podemos encontrá-la nas suas mais variadas formas: a violência doméstica, a violência urbana, a violência do fetiche sexual, a violência do Estado contra os menos favorecidos, a violência que emerge com a vingança. Desses ingredientes, a combinação mais explosiva no livro de Mariel Reis se dá entre violência e sexo. No conto Absolvição, por exemplo, o fato de o protagonista ter transado com a enteada menor de idade provoca a ira e a vingança da esposa. Esta, numa explosão de fúria, esfaqueia o marido e a filha, para ser, em seguida, espancada por ele. É de dentro da prisão que o protagonista conta a sua história ou a sua tragédia familiar. E é aqui que entra a verve irônica e corrosiva de Mariel. Para espanto do leitor, depois de toda a tragédia, de todo o “barraco”, tudo se resolve num ajuste que foge aos padrões de composição familiar da nossa hipócrita sociedade: a bigamia.
Falando assim, posso dar a entender que os personagens de Mariel Reis, em Vida cachorra, são, por natureza, violentos. Que eles, por uma propensão natural, buscam a prática da violência. Na verdade, eles são levados a praticar a violência. É o que acontece, por exemplo, com o protagonista do conto Amor filial: ele está em busca da regeneração, da ressocialização, de desfazer os erros cometidos, mas, ao se ver prejudicado pelos desatinos do irmão com problemas mentais, é levado a agir com extrema violência. “era meu irmão. eu não queria matá-lo. não foi minha culpa. minha mãe é doente da cabeça como o doutor pode ver, não bate bem”, ele confessa ao delegado. Há ainda aqueles que aceitam a violência como parte da sua rotina, como é o caso de Sueli, protagonista do conto homônimo. Ela apanha do gigolô e aceita isso com naturalidade, sem esboçar nenhuma reação. “às vezes ele me bate. não é toda noite, não. só quando não trago dinheiro”, conta ela resignada.
Em alguns contos, há um interlocutor a quem o personagem narra sua trágica história. Não ouvimos a voz desse interlocutor. Lembra-nos, de certo modo, Riobaldo narrando sua vida aventurosa e repleta de violência a um interlocutor que apenas o escuta. Um senhor da cidade. Aqui o protagonista, em busca de justificativa e explicação para o seu ato violento, dirige-se a um doutor. Esse doutor ora é o delegado, significando o aprisionamento do personagem, ora é o advogado, de quem o preso espera uma resposta positiva à sua ânsia de liberdade. É através desse monólogo que adentramos a vida do protagonista. É a partir dessa narração desesperada que podemos formar um juízo de valor a respeito do ato praticado por ele e aderir ou não à sua causa.
A opção de Mariel por uma narrativa despida de adornos estilísticos, sem floreios verbais, acentua ainda mais o caráter brutal da existência dos seus personagens. Assim como o universo que ele se propõe retratar, a sua narrativa é dura, seca, cortante. É uma narrativa feita a estocadas. Para isso, o autor faz uso de frases curtas, dispensando o emprego da maiúscula e, na maioria das vezes, de travessão na transcrição da fala dos personagens. Esses recursos tornam a narrativa mais fluente e direta. Nota-se, claramente, a intenção do autor de expor o assunto sem maquiagem. Para um leitor desavisado ou acostumado com narrativas leves, quase sempre na superfície da vida, esse estilo direto, sem meias palavras, pode assustar ou não agradar. Uma coisa, no entanto, esse leitor deve perceber: a consciência do autor de Vida cachorra de que linguagem e realidade se fundem num todo indissociável.
O fato é que não se sai ileso da leitura desse livro de contos de Mariel Reis. Vida cachorra é um soco direto na consciência do leitor. Caso o leitor tenha nervos para avançar na leitura dos contos, coragem suficiente para mergulhar nesse mundo de vidas fragmentadas e experimentar a pulsação da vida nos seus extremos, chegará, sem dúvida, à seguinte conclusão: queiramos ou não, a existência desses personagens que tocam o mais baixo degrau da vida, que experimentam as agruras e os desatinos da vida em sociedade ou em família, passa a povoar a nossa mente. Sairemos à rua, a partir de então, com o olhar mais aguçado para captar a estranha pulsação que permeia a tênue tranquilidade que nos cerca. E, não sem assombro, constatamos, a partir de agora, que a fronteira entre céu e inferno praticamente não existe.
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