Exercício - Etnografia Ficcional

I


É sexta-feira. Dois jovens cumprimentam-se com uma saudação típica para suas idades. Regulam entre dezesseis e dezessete anos. Vestem calça jeans, tênis da moda, cabelo com corte moicano [corte de cabelo indígena americano e de povos de origem celta. Utilizado durante o movimento Punk, fim da década de 70], imitando o ídolo do futebol Neymar, jogador do time do Santos. Acompanho o mais velho que trata logo de me apresentar ao seu amigo mais novo; afastam-se, precisam decidir o que fazer com a minha companhia, o mais novo parece não confiar em mim e demoram em cochichos por uns cinco minutos. Ambos os jovens vem de família constituída tradicionalmente, não são filhos de pais separados, possuem boa cultura média no que diz respeito à faixa etária e se expressam com um vocabulário razoável.

O julgamento termina e logo estamos a caminho do lugar em que me prometeram levar. O rapaz de dezesseis anos, que passaremos a chamar de Marcelo, toma a iniciativa de puxar conversa. Explico que sou um curioso a respeito de ambientes como aquele para o qual nos dirigíamos, não esperava o momento de chegarmos. O mais velho, Sérgio, doravante, não sabia muito bem se me aceitariam no recinto. A minha aparência, sem a barba e o bigode, enganaria quem se arriscasse a decifrar minha idade, evitasse falar muito, porque daí os freqüentadores concluiriam que eu não pertencia a tribo que estava ali reunida, advertiu-me Sérgio. Marcelo concordou com as precauções indicadas pelo amigo e que eu relaxasse. Depois que entrássemos, não haveria problema, lá dentro ninguém iria ligar se eu dizia a verdade ou não.


Tomamos uma condução [Ônibus 665 – linha Pavuna – Saens Peña, com trajeto pela Avenida Brasil, com inúmeros percalços durante o percurso, como assaltos e desinteligências. A condição do coletivo é precária. Os passageiros parecem não se importar com o estado dos assentos e a má conservação] para a Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro, região cercado por inúmeras favelas, mas que um dia foi uma parte nobre da cidade. O bar, ou seja o que for, ficava atrás do Tijuca Tênis Clube.A festa acontece desde 1998, reunindo cerca de 900 a 1.500 jovens - quase todos de classe média.

Descemos na Praça Saens Pena e o resto do caminho, fizemos a pé. Marcelo tinha a expressão carregada, parecia não acreditar muito que eu conseguisse me passar por adolescente; Sérgio não estava preocupado com nada disso. E, se temia alguma coisa, parecia somente ao fato de me explicar que não se tratava de um bar comum, onde as pessoas se reúnem para bate papo ou azaração, que não existiam mesas pelas calçadas ou um garçom que se ocupasse de atender os clientes. Lá é bem diferente, me afirmou Sérgio. Perguntei se os seus responsáveis sabiam que freqüentavam esse lugar tão diferente. As respostas invariavelmente sinalizavam que seus pais eram informados, não de um modo completo, sobre o que se passava com seus filhos em ambientes como aquele em que estávamos prestes a ingressar. Outra coisa era o custo, quase R$ 50,00 por pessoa. É caro, frisava Marcelo, mas depois é só curtir a festa. O valor de nossos bilhetes somados representava uma compra de mês em um mercado popular para uma família de classe média baixa com dois filhos.

Na bilheteria não houve dificuldade. Uma fila se fazia na porta. Dezenas de adolescentes entre rapazes e moças aguardavam sua vez de entrar. Todos vestidos com roupas da moda, portando celulares e palm – tops. Uns com piercings e tatuagens cobrindo quase todo o corpo, outros pareciam saídos de musicais americanos modernos, como high school music

Um homem negro, grandalhão [O negro grandalhão é de Magalhães Bastos, serviu o exército, foi paraquedista, mora com a mulher e dois filhos. Faz pequenos bicos de segurança em festas e escolta pessoal], verificava os ingressos e depois os jovens sumiam por um corredor escuro. Na minha vez todo nosso receio foi desfeito; o segurança nem notou a diferença entre eu e os meus acompanhantes. Seguimos pelo túnel escuro que desembocou em um amplo salão, com luz estroboscópica, muita fumaça de gelo seco e música eletrônica. Passavam por nós meninas em patins com bandejas de bebidas, uniformizadas: uma pequena bermuda de lycra, um top minúsculo, joelheiras, cotoveleiras e capacete.

Um disque jóquei comandava do alto de uma torre o naipe de músicas variadas que embalavam o ritmo dos corpos jovens que ali estavam. Em uma sala diferenciada, com uma luz vermelha suave, uma mesa enorme com frutas e guloseimas. Um banquete. Vigiado por uma mocinha ruiva de patins [A mocinha ruiva é estudante de Serviço Social, em uma universidade particular católica no Rio de Janeiro, mora com a mãe na região da Leopoldina, no conjunto do IAPI, situado na Penha. A mãe é separada do pai há mais de dez anos e é professora primária em escola da região] , que tive a impressão de ser a mais enérgica delas. Quando um dos meninos se aproximou da mesa, provando uma coisa qualquer e desgostando, pondo-a de lado, em um canto da sala, foi procurado pela ruiva e quase obrigado a tomar de volta o dejeto para ir colocá-lo no lixo.

Sérgio e Marcelo já haviam se misturado a multidão a tal ponto que não pude distingui-los mais. Depois de uns trinta minutos reapareceram. O lugar constituía-se de três ambientes. O primeiro, a entrada, com disque-jóquei, a luz sucessiva e periódica e a fumaça de gelo seco, as garotas servindo bebidas em patins; o segundo, com a mesa farta para se regalar com frutas e quitutes, com vários almofadões pelo chão para se sentar, vigiado pela ruiva que não permitia que uma desordem maior que a da própria multidão do local se instalasse e transformasse aquele lugar em um chiqueiro e o terceiro ambiente, um largo recinto tão escuro quanto o primeiro, tinha um palco, onde nada acontecia e várias mesas compridas, com bancos de comprimento igual, ocupados pelos casais e pelos copos descartáveis de bebida.

Todo o lugar era limpo obsessivamente.

Os banheiros recebiam limpeza a cada vinte minutos. Não se notava nada de anormal, não havia nenhuma excitação perceptível ou desconforto dos que lá estavam reunidos naquela multidão. As horas avançavam. Marcelo estava meio alto, confidenciou-me o quanto já havia beijado e quase tinha conseguido transar. Sérgio ria. Juntou-se a nós e caçoava do amigo. Pontuou que da última vez saíram ambos com a mesma menina, criticando o desempenho do amigo que não deu conta de apagar o fogo da garota.

Verdade ou não, as meninas não estavam ali para brincadeira. Minissaias, calças justas no corpo, iam de um lado para outro, inquietas por uma abordagem. Sérgio, com a mão em concha, grita em meu ouvido, você ainda não viu nada. Espera só. A música parecia ensurdecedora. As meninas com patins trouxeram uma bebida azulada[bebida alcoólica chamada Lagoa Azul] e ao lado de cada copo uma pílula [provavelmente uma droga sintética, extasy]. Os jovens formavam filas para tomá-las. Nada de imediato acontecia, parecia o catecismo, a hóstia que era o corpo de Deus, ministradas pelos anjos de patins e roupa colante. Marcelo e Sérgio apoderados de ansiedade engoliam aos golfos o comprimido. É o ponto alto da festa, você vai ver, sentenciou Sérgio. Agora é que as coisas começam a acontecer. Fiz o mesmo. A ingestão da pílula, no primeiro momento, não me pareceu perigosa, porém depois de alguns minutos, espalhou-se pelo meu corpo o formigamento nos membros, minha boca estava seca e eu dançava mecanicamente, embalado pela música.

O palco, antes vazio, agora ocupado por dezenas de jovens que ensaiavam coreografias desencontradas; guiados pelos impulsos musicais, tiravam a roupa, como se o calor se tornasse insuportável. Nus ou seminus atiravam-se uns contra os outros freneticamente. As meninas dos patins recolhiam carteiras, relógios, pulseiras e outros pertences que ficariam expostos na saída para serem identificados pelos donos quando a festa acabasse; havia pelo salão seguranças para conter casos mais extremos, que derivassem para violência. Sérgio e uma lourinha dançavam nus, beijando-se, provocando-se mutuamente em posturas lúbricas que logo terminariam em sexo sobre um daqueles bancos enormes. Marcelo não tivera a mesma sorte ou o efeito para ele era outro, gesticulava sozinho, andando de um lado para outro, sem atinar com o que lhe ocorria em torno.

Eu parecia um boneco de engonço, eviscerado pela dança frenética, extenuado por tentar controlar minha mente que desejava rodopiar, sem um ponto em que se apoiar ou apaziguar seu desatino. O sexo parecia natural para alguns daqueles jovens. E era praticado como parte dessa naturalidade. O efeito gerado pelo uso da pílula poderia ter gerado a (des) inibição. A festa se prolongou até as cinco horas da manhã. Quando saímos, Marcelo e Sérgio estavam esgotados. Recebi um folheto com a programação da Casa que funcionava como bar e abrigava festas de aniversário com trinta por cento de desconto se o aniversariante trouxesse quinze convidados. E a lourinha, eu perguntei. Sei lá, não gravei nem o nome dela. Parece que naquele instante todos estavam reféns de um pacto amnésico, onde seus rostos ou identidades não importavam somente a diversão extrema. Alguém já morreu em uma festa dessas? Resolvi insistir. Como não obtive resposta, eu mesmo me dei a minha, se ninguém morreu, tudo bem, no entanto, eu quase morri. E bati com as mãos nas minhas pernas trêmulas.

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