trechos de minha conversa com marcelo moutinho sobre vida cachorra.
"há nele uma tristeza tão grande que não permite ao livro ser poético, porque se assim fosse seria um atentado as vidas miseráveis que descrevo e preferi por isso essa estratégia narrativa que tem laivos poéticos em entrelinhas tão rarefeitas que se a observarmos com muita pressa não seremos tocados. como por exemplo, em amor filial, quando o homem se entrega no lugar da mãe, ela enrola a janta e o acompanha à delegacia e a outra tomada dessa posição está integralmente em espírito natalino. ambos estão em conexão com o john porque se o primeiro pode ser desprendido das incursões sobre foco narrativo - por mil demônios - o segundo, é parte do texto intitulado viagem, porque versa o mesmo fracasso. contudo, entendo o ponto de vista a que você está me submetendo."
"procuro ressaltar com discrição a pequena felicidade do qual gozam as personagens. no john fante há o escapismo fantasioso dos indivíduos para regiões além de sua percepção ou exilam-se em sua própria angústia ou impotência. nesse vida cachorra procurei não dar repouso, alento ou esperança demasiada. há uma filosofia pessimista em todo o livro, mas uma maneira de narrar correta sobre os merdunchos que me deixou feliz, porque não me situo acima deles ou abaixo ou folclorizo; faço com que se utilizem de seus discursos para se apresentarem como são, mesmo com inevitável perda. o trecho de foucault fundamenta assim o livro. parti dele e cheguei a algo que é interessante. eles não estão desumanizados, estão apenas marginalizados. vivem uma humanidade ferida, inconsentida pelos demais e por isso pagam por desfrutá-la. ultrapassam o métron, cometem a hamartia e são punidos pelo "doutor", pela voz vigilante e panótica que os encerra ou na loucura ou na solidão ou na cadeia."
"porque não me tinha situado como o narrador trágico, não antes, essa conversa abriu uma picada em meu cérebro para a avaliação do caminho de confecção do vida cachorra que tem um projeto similar ao realista, toma emprestado projeções de um real que possivelmente se classificaria desse modo, mas é burlado quando dispomos de um recuo e percebemos que estamos sendo enganados por artifícios meramente literários, como a presença do duplo e ironias internas como a que está em indigestão. e não um narrador à moda fonsequiana, demarcador de um território ficcional claro, sem imprecisões."
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