EScrevendo uma Apresentação Inusitada que Nunca Será Usada
As Fúrias e Casa de Máquinas
“nem sempre é terrível a música orquestrada das máquinas pesadas”.
A tecnologia é a ferramenta usada para estender nossas habilidades. Na mitologia percebemos claramente seu uso para o benefício dos heróis em suas peripécias. O caso mais óbvio desta definição esta em Perseu em sua luta contra a górgona Medusa se utilizando da espada – uma extensão perigosa do braço – e do escudo onde se refletirá a imagem fatal desta petrificadora de homens, quando encarada diretamente. Este escudo servindo para ampliar o sentido da visão do herói, auxiliando-o em sua missão.
A tecnologia está presente no livro Casa de Máquinas, de Alexandre Guarnieri, que está ligado diretamente e de algum modo à invenção da cidade e a presença de sua história através da aura destes objetos que contam sobre o homem e seu percurso no espaço urbano:
Cidade
é a metrópole -- crisálida precária de concreto
-- esse dragão atropelado entre os lírios e
aneurismas da indústria; sua construção um
crime incrível porque o futuro da pedra
recriada o mosaico lacrado sobre si: síndrome,
urbe, neon a ilumina, tóxico o aparato-lux;
animal a cidade, aço na ossada, sibila a bile
de seus esgotos, vindo à tona, sob episódios de
óxido. os dias da cidade deglutem-se contra
suas próprias costelas luminosas; as tardes que
um outro aço veloz apodrece. anoitece, céu-
receio, resquício químico de toxinas. galáxia
de vias, avenidas infinitas, gritos na rua
vizinha; são uivos elétricos sob a vigilância
de olhos sintéticos, o mundo ainda quase
recolhido sob gigantescos quilômetros de
madrugada; nos apartamentos que restam acesos
há barricadas contra os sintomas do sono.
A presença de um lirismo anti- convencional que retrata a existência da coisa bruta, não sem aparatos de delicadezas, vide o poema Lâmpada, é uma marca da poética ensaiada em todo o livro.
As máquinas são a expressão do corpo humano, criadas pelo homem para reproduzir suas funções primárias, atendê-lo em suas necessidades cotidianas e não foge ao sonho de reconstrução do objeto divino/divinizador da natureza, rivalizando com o Demiurgo e sua realidade além - idéia na imitação daquilo que está no mundo sensível.
Outro aspecto no livro Casa de Máquinas é o da punição da Pólis, executado no poema Século XX - todo o livro guarda relação direta com a mitologia greco-romana no arcabouço de arquétipos que cria - porque por todo ele está o sopro das Fúrias, com sua música nem sempre terrível, mas atroz, que desaba das máquinas sobre os homens, encerrados no Hades/ Cemitério - vide poema Ferro - Velho - onde esses expurgos também cumprem suas penas, mesmo depois de descartados vivendo o estranho suplício tantálico de sua não- realização.
Não acredito que a intenção do autor fosse de marcar no substrato dos seus textos a presença infrene dos arquétipos aludidos aqui, mas não se pode excluir da vida moderna esta epopéia mínima, que se observada, dialoga profundamente com a tradição.
Mariel Reis
Comentários