Cartas Fracassadas II
Caro
Aguinaldo Silva,
Insisto
com você, não é mesmo? Que diabos, você deve pensar, porque me
perturba tanto, o que fiz a Deus para merecer isso? Eu não o culpo,
absolutamente, não o culpo, também não o culpo por ter sido um
ficcionista de primeira linha, tradutor e editor de igual
competência. Entretanto, eu também não me culpo. Não me culpo por
ter lido Redenção para Job, nem a introdução que o posiciona como
uma virtuose da literatura, não me culpo por ter encontrado o livro
sendo vendido em Ipanema, na banca do Barba, como é conhecido o
livreiro daquelas bandas, um sujeito tão inusitado que poderia ser
criação sua se não pertencesse a si mesmo, ou , antes, a Otto Lara
Resende e Fernando Sabino que tinham especial carinho por esse
livreiro que se entorna em uma das esquinas da Rua Canning. Você não
tem culpa nenhuma, Aguinaldo, de ter se tornado um teledramaturgo de
sucesso, crescendo aos olhos desse menino que acompanhava suas
novelas, entusiasmando-se com Senhora
do Destino, O Outro, Duas Caras...E
não tem culpa nenhuma por eu ter passado quinze anos sem luz
elétrica, lendo à luz de velas ou sob à luz de lampião à
querosene, mesmo essa história não acontecendo em um interior
qualquer do país. Eu não tenho culpa como você também não tem
por ter tido preferência pelos livros, muito mais por eles do que
por futebol, muito mais por eles e seus autores do que pelos
jogadores e seus feitos; muito mais por eles e suas vidas torpes e
maravilhosas do que a vida torpe e torta dos poetas das quatro
linhas; muito mais por eles por ter descoberto Dez
Histórias Imorais do
que pela folha seca de Zizinho e até mais do que a rebeldia de
Josimar e muito mais do que os gols de Túlio. Você deve estar se
perguntando aonde, diabos, quero chegar, o que eu quero de você,
escrevendo-lhe como um possuído, embora sem pretensão de ser
literário, embora sem pretensão de convencê-lo, contudo, ansioso
por enxergá-lo abrindo seu computador, atualizando-se acerca dos
e-mail’s e este repousando ao canto como um gato que espera o afago
do olhar do dono, como um felino que espreita os movimentos dos dedos
de seu proprietário, tal a miniatura de tigre que sorri enquanto
devora gestos e equívocos. O que diabos, ele quer de mim? Deve estar
pensando à essa altura, porque não é instituição de filantropia,
não tem vocação para madre Teresa, não é do exército da paz,
não é das forças da ONU, não é das forças especiais, não
integra ONGs que cuidam dos necessitados, não está incorporado às
fileiras que se desdobram em caridade para atenuar a mea-culpa por
ter ascendido, então, deve estar se perguntando, que diabos poderá
uma criatura dessas exigir de mim, eu que apenas tratei de meu
destino e cumpri minha vida tão honestamente, que evitei os deslizes
e que se errei não me furtei em repreender-me e acusando-me reparava
o que era para ser consertado. Insisto que você não tem nenhuma
culpa. E falte-me vidência para apontar em que lugar do futuro ou do
passado meus olhos se voltaram da escuridão em que estavam
enterrados, explodindo em fogo-fátuo como cadáveres que
ambicionassem juntar sua luz a dos astros e falhassem. Aguinaldo, eu
não tenho culpa de como o destino enredou-me na minha própria vida
e enredado como estou não posso fugir-me ou apenas calar-me ou
morrer-me como mordaça transparente que me roubasse as palavras e
evitasse que me dirigisse a você, porque você tanto quanto eu, nós,
isto quer dizer, somos inocentes. Se me perguntar de que modo
inocentes, não sei responder; e, se ir além, e quiser me perguntar,
inocentes de que tipo de inocência também não saberei responder e
se quiser me fustigar uma outra vez, ponderando que a inocência de
que estamos imbuídos não nos faz sequer irmãos, porque diferente,
porque marcada por outra mancha, porque Carpina e Pavuna não se
cruzam, não poderei rebatê-lo ou desafiá-lo em sua constatação,
em sua descoberta, terei que me calar como era de fato necessário,
premonitório e simples, porque toda essa toada atroz, toda essa
maldita toada de um sujeito que é um nada, um pilantra qualquer, um
rastaqüera, um babaquara, não tinha mesmo que chegar a lugar algum,
não tinha mesmo que romper a barreira do som, não tinha mesmo que
ferir os ouvidos, não, não tinha que arranhar como faca no vidro ou
amolar como navalha na tira de couro ou riscar o muro como prego na
mão de menino. Por que não se cala, por que diabos, não se cala? É
porque meu silêncio é temeroso, é um passo para o túmulo, é um
salto para a desintegração. Por que você não se cala? É pela
palavra casa que não me calo, mas você não tem culpa, o governo
está aí alardeando que todo mundo pode, por que esse pobre diabo
não pode? O que lhe falta? Alguém que lhe abra a porta? Alguém que
o deixe de alma estendida? Alguém o dobre como a sombra pelas
esquinas dos edifícios e o encoraje a subir às alturas e depois
peça aos anjos que o entorne sobre os vidros e esquadrias como a
chuva e impregne as galochas dos transeuntes, que amole o casal de
namorados, que desgrace o passeio dos idosos ou arruíne o programa
das crianças. Você não tem culpa, Aguinaldo, não tem. Eu também,
não. Tanto alarde e artista em propaganda governista para dizer que
o sonho está próximo, que agora o pobre não amolará mais a
ninguém, tudo mentira, mentira e mentira. Ah, se eu me fosse
criança-esperança perdido no pomar da lembrança, no beijo repleto
de nuvens e faiança, no fandango, na contradança da ruína de uma
prima que se perdeu na vida por absoluta falta de usança do coração
que lhe palpitava, quando em cima da casa, sobre as telhas, eu
confessava eu te amo eu temo você me aguarda? A telha ruía. E zás
caímos os dois na sala. Toda essa lembrança não serve -, me diz o
homem da Caixa, não paga, não é nem entrada da casa. Daí me
ocorreu você, Aguinaldo, porque você fez do sonho sua estrada e a
enverga conforme o céu lhe cede e arma em torno o pássaro
diferente. Não é caridade, afirmo, vezes a admiração elevada ao
infinito, penso em como posso retribuí-lo, aos poucos, aos
bocadinhos... Tudo lhe seria restituído. A razão, em miúdos, é o
trocadinho arrepanhado em um balcão de advocacia, como auxiliar de
arquivo. Um apartamentinho, um teto, você, sei, eu sei, não, eu não
sou seu filho, sobrinho ou sei, eu sei, não se faz possível, se nem
mesmo somos conhecidos. Eu não esmoreço, insisto, quase inoportuno
se minha cantilena não se fizesse acompanhar por acordes atraentes,
gestos limpos, um pedido coerente: Aguinaldo, me ajude! Não é
indecente pedir ajuda, não é mesmo? Eu, humilde, agradeço,
subscrevo meu afeto e disposição para provar os fatos tão idôneos
quanto este que vos fala do alto de seu cansaço de se rebelar contra
a vergonha,
Um
abraço
Mariel
Reis
2012
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