Formação
Como
me tornei escritor
Para
Cláudio S. Carvalho
De minha turma, eu era o
lerdo, o lento, o atrasado, o desinteressado ou o colegial problema. Era assim
que os manuais de psicologia me classificavam, reprovando o meu desinteresse e
minha apatia pelos conteúdos escolares. Apesar de minhas notas desmentirem os
comentários dos professores, durante os conselhos de classe, preferiram a
certificação de um analista da área para saber onde diabos minha cabeça andava
metida durante as aulas. A minha atitude aérea escandalizava os meus educadores
e, ainda mais, os meus resultados. À minha companhia, somava-se,
inexplicavelmente, a do cara mais bonito da escola e, portanto, o mais popular.
As garotas sentiam-se atraídas por ele e aceitavam minha condição de
penduricalho do bonitão a contragosto para ficar na companhia dele.
O meu humor começou a
aparecer, embora tímido. As garotas não se queixavam mais com tanta freqüência
sobre a minha estranheza e convencido pelo bonitão, tornei-me um extrovertido do
dia para noite. A minha atitude aérea dissipava-se. E a minha turma aumentava a
cada bimestre. Éramos dez ou quinze pessoas. Ele tinha palavra de rei entre
todos nós. Além de bonito, era inteligente. Um leitor aplicado - descobri depois
–, de poesia e um galã, um conquistador de causar inveja. Um Casanova - de
psicologia peculiar, de ação envolvente - , com umas idéias diferentes para um
rapaz de dezessete anos.
Certa vez, reuniu o
bando em uma praça, dispôs a todos em círculo, colocou-se no centro dele,
anunciando que agora éramos uma instituição não apenas de sacanagem, mas
daríamos um passo além, incluiríamos em nossos planos a cultura. As meninas
abismaram-se com o pronunciamento, porque se a cultura influenciasse melhor a
sacanagem, era um bom negócio. Ele prometeu que sim, otimizaria
nossas relações, e retirou um livro do bolso da calça jeans sobre o qual cada um
prestou juramento de obedecer ao programa que seria instituído. O livro era
Filosofia na Alcova. O escritor era Marques de Sade. Nós, estudantes de escola
pública, tínhamos pouca ou nenhuma instrução sobre quem era esse libertino que
terminou martirizado seus dias em um hospício, montando com internos suas peças
teatrais. O alvoroço tomou conta dos rapazes que passaram a ter fantasias
indescritíveis. As poluções noturnas testemunhavam as orgias em que se envolviam
durante o sono.
Ao final do
pronunciamento, ele, o bonitão, criou responsabilidades para cada um e a minha
era a dos relatórios sobre nossas excursões aos museus e outros ambientes em que
a tal cultura estivesse representada. Tornei-me uma espécie de secretário de
partido político. Um partido anárquico, claro. No Museu de Arte Moderna, depois
de demorada visita para compreensão do fenômeno conceitual de que a arte
contemporânea estava infestada, organizamos uma maratona nos jardins do museu.
Ele dividiu os casais por afinidade. Sempre em círculo. Sentou-se no meio dele e
leu um longo poema do poeta americano Walt Whitman em que descrevia a
contemplação dos corpos dos banhistas. Eu e minha parceira beijávamo-nos a
valer, com cada vez mais intensidade, ouvindo cada palavra. A vibração
estremecia nossos corpos. A noite caía na marina. A voz dele calava-se,
repentinamente, tapada por outra boca, a de sua garota. E outro retomava o
poema, como em uma cerimônia de acento religioso.
A minha educação para
escritor deu-se nos intervalos
de cultura, era como chamávamos esses encontros. Dividíamos nosso corpo,
nossa voz, nossos anseios e nossos medos. Ele, o bonitão, dizia uma coisa sabida
“Passe a língua nas coisas e depois passe as coisas para a língua”. O meu
aprendizado de escritor passou a ter como centro o prazer de observar o mundo,
ternamente. E amá-lo, mesmo com incongruências. Quando realizo a reflexão sobre
o motivo de ter me tornado escritor, tenho uma resposta diferente a cada vez,
mas todas ligadas ao amor, todas preenchidas pela felicidade.
Autor: Mariel
Reis
27/11/2013
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