Correspondência Ficcional - Exercício
R.,
Nossa convivência real estará sempre mais adiantada que a virtual. O motivo é que não passamos tanto tempo de nossas vidas ligadas a internet,o que é um mérito, porque nos dedicamos a outras tarefas. Isso é legal, porque cria outra área de convivência, menos apressada e curta como é a jornada de trabalho.
Se você não se referisse ao e-mail – se eu o havia mandado ou não – juro que não me atreveria a lhe perguntar se havia lido. Julguei que a tivesse aborrecido com meu “primeiro contato amistoso”. Afinal, eu estou tantas vezes na sua frente, porque não falar diretamente? O motivo é a concentração em nossas tarefas e a imersão de cada um de nós no que realizamos.
Não sei o que é – e nem é oportunismo o que vou declarar – contudo há algo calmo em você que me agrada, algo ordenado e tranquilo, escorrendo suave de suas mãos. Desprendendo-se lento de sua voz e emanando com uma luz que brilha sem violentar o objeto que ilumina. Pode ser apenas aquilo que é em mim ausente o ponto de partida dessa impressão ou uma insuficiência que somente percebo agora quando a miro através da lente do arquivo – essa sala onde passo a maior parte do tempo encerrado.
É meu segundo contato. Acrescento mais a ele do que ao primeiro – que é mais uma espécie de apresentação. Este, repleto de um julgamento mais subjetivo, quer enquadrá-la em minhas aspirações interiores, ou seja, como a percebo, as cores que lhe ornam e tudo o mais a que posso dar atenção no tempo que me sobra entre as tarefas.
É uma terça-feira monótona. Terei que cozinhar o prato predileto de minha filha, além de fazer feijão com o auxílio dela, de minha esposa e do meu cão. Talvez durante a confecção do jantar somem-se outras reflexões acerca do dia que já terá terminado; um balanço do qual sairá mais outros pensamentos acerca do vi ou vivi na jornada que já se extingue. E, se no meio do imbróglio outra vez me ocorrer o que vale partilhar, eu dividirei com você. Se não são coisas originais, não importa, ajudam a passar tempo com elegância e discrição.
Ah, não se esqueça de me retribuir o contato com uma longa e minuciosa resposta para recompensar-me pelo esforço de tão longa carta – e-mail – em que me esmero para escrever bem e encontrar no marasmo do serviço uma movimentação interior que valha à pena retratar. A minha sorte é você ser a minha interlocutora e foco nessa paisagem tão óbvia. Imagine com quem mais poderia descrever devaneios psíquicos como estes sem que alguém me tachasse de sei lá o quê.
Agora me despeço.
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R.,
Um contato amistoso. Eis um título no qual poderão estar reunidas dentro de algum tempo nossa troca de correspondência virtual. O que acha? Espero que se estenda para além da virtualidade nossa conversa. Esses são meus votos para a saúde dessa nova relação. É muito confortável escrever para alguém que sabe que lerá com avidez linhas comuns que tratem apenas de devaneios, confissões e desencontros – sejam estes quais forem. E para celebrar encontros - que sirva mais a este propósito do que ao anterior, não é mesmo?
Gostaria de propor assuntos para serem discutidos – a natureza deles você mesmo poderá me ajudar a decidi-lo. Eu não me importo muito em me expor, contudo que isso não fira as sensibilidades à minha volta. Podemos elencar aqueles assuntos com os quais tenhamos afinidade ou incertezas e quiséssemos testar o que sabemos ou trocar o que podemos saber sobre aquilo que repousa nosso interesse. É uma boa sugestão, não? Ou mesmo poderíamos discutir um livro? Se há um tema que possa interessar mutuamente, por que não? Eu tenho um que sempre interessará as mulheres, é de um autor chamado Stendhal e intitula-se O Amor. Esse pelo tema universal não representará leitura enfadonha ou desestimulante como outro, também nominado com um substantivo tão abstrato quanto este último – Fome, Knut Hamsun. É outra experiência literária tão bem realizada quanto a outra sugerida.
É certo que não leio best-sellers. Não me force a começar por agora. Esses deixam na boca um gosto de comida falsificada, de culinária industrializada, portanto de comida cenográfica que não serve para digerir, se não com os olhos, fazendo com que o corpo morra a míngua, não ganhe nutrientes e depois faleça por falência múltipla dos órgãos. Todo o comentário expressa o meu horror a esse tipo de livro. Como disse é certo que não leio - isso não quer dizer que nunca os li. Por motivos “profissionais” um ou outro livro dessa natureza caiu em minhas mãos para “estudo”. E até determinado momento me surpreenderam. Harold Hobbins em traduções de Nelson Rodrigues ou Anne Rice em tradução de Clarice Lispector. O que um escritor sério não faz para ganhar a vida, não?
Agora você também faça sugestões. É solitário demais estar aqui do outro lado como que conversando com o vazio – entenda vazio: falta de resposta. Sabendo que uso os dois pontos como um sinal de igualdade. Não me falte em suas considerações. Mesmo que um assunto abstrato ou fora de propósito vale para encher as páginas livremente, sem o compromisso com a literatura. Somente vale o entretenimento entre dois espíritos, a recreação que duas almas possam colher a respeito das coisas e a intrusão de nossos olhos sobre outras realidades. Um exercício de existir através do que está além de nós; mas sendo humano, seguirá aquele conselho fixado no alto do posto dos bombeiros em Copacabana: “Nada do que é humano nos é estranho”.
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R.,
Aproveito o longo silêncio a que você me tem submetido para me queixar sobre a ausência de resposta aos meus e-mails. Não entendo a falta de interlocução – não querendo contato dessa natureza é só sinalizar “Mariel, não quero ser indelicada, mas essa troca de correspondência não me interessa nem um pouquinho”. Ou, simplesmente, para não cansá-la em digitação excessiva “Não”.
Vou poupá-la do gesto. Encerro aqui meus contatos amistosos por falta de resposta. Um monólogo não é um diálogo. E tampouco naquilo que propus fui ofensivo ou odioso. Pode ser apenas timidez, eu penso. Contudo, mesmo a timidez acena e se a introversão se faz mais forte presente, responde àquele que chega seu desconforto em se relacionar. O que é uma pena.
Ainda, para me socorrer na falta de respostas, arrisco uma proibição de namorado ou noivo ou sei lá o quê. Releio as cartas eletrônicas e não vejo nelas nenhum teor que provoque ciúme ou discórdia dessa parte também.
Em tudo isso apontado, eu posso estar enganado. Talvez seja mais cômodo apenas os acenos, as poucas palavras trocadas em nosso ambiente de trabalho do que insistir em corresponder-se. Eu lamento muito se não a entusiasmei em dar continuidade as palavras iniciais dessa conversa.
Retiro-me do diálogo até que suas palavras o queiram recolocá-lo no lugar.
Abçs
***
Acabo a conhecendo por partes. Através de recortes involuntários, salta algo sobre você. A ironia sobre a mancha vermelha na camisa de nosso colega de trabalho mostra uma faceta religiosa desconhecida, ligada à figura de Cristo. E sua advertência para que eu não debochasse indica que sua espiritualidade está nesse caminho do messias. Está certo que me prometi não dar mais nenhuma palavra consigo enquanto você não retornasse minhas palavras seja com que resposta for: positiva, negativa ou restritiva.
Por que não me responde? Medo, repulsa, indiferença ou descaso?
***
Não ligue aos meus chiliques de rejeição. Não me passou pela cabeça que você não tinha acessado aos e-mails. Você me convenceu do contrário. Prefiro crer que realmente você não os leu. É menos doloroso. Melhor que ser ignorado e acreditar na crueldade de um silêncio que não se justifica.
Hoje você está particularmente muito bonita. Quando pela manhã os seus cabelos apoiados ao ombro, delineados pela tiara negra, acentuavam novas zonas de beleza ao seu rosto e me deu muito prazer em observá-la e apreciar a emanação singular que esse efeito produziu.
Perdoe-me se a elogio.
É inescapável a sensação da beleza, seja lá onde ela repouse e sobre que forma assuma, precisa ser pontuada A beleza daquilo que se mira se transfere por alguns minutos para aquele que observa. E é nesse pequeno instante que o observador e o observado se irmanam, somam universos escondidos, dividem o sentimento que os unem. É um ato supremo ver a manifestação da beleza, um ato de doação e de amor.
Hoje estou sonolento. A paralisação da polícia militar do Rio parece ter atingido as pessoas. Paira uma sensação de desamparo e insegurança que creio justificáveis devido a violência que até pouco tempo assolava a cidade e o medo do retorno desses atos odiosos... Não estou sendo original. Deveria comentar a política de segurança pública do governo Sérgio Cabral, as ações que em vez de cessarem confrontos, acirra-os. Não tenho ânimo para parecer inteligente, hoje. Arrisquei um pensamento aqui nesse e-mail que me pareceu razoável – “A beleza daquilo que se mira...” É o bastante.
Espero as suas respostas.
Abçs
***
Quando você for ler todo amontoado de palavras que já lhe escrevi, estará tão frio como o resto de uma fogueira que se apagou faz bastante tempo. E será preciso muita força para renová-lo. É difícil decidir sobre o que se deve falar, quando se dialoga com o silêncio. Deste modo as palavras vão encontrando um jeito próprio de significar algo além delas mesmas. E se conformam ao que se deseja dizer, mesmo a observação mais banal sobre o tempo ou um apontamento sobre o que comer no café da manhã do dia seguinte.
É um fim de tarde parado, com uma luz baça do sol invadindo a janela, a movimentação lenta do trabalho que se encerra e a conversa sobre planos do fim de semana. Muitos não sabem ao certo o destino que darão aos dois dias que se dedicados ao descanso não prescindiriam de planejamento algum. Contudo, é imperioso para algumas pessoas ter suas vidas em um fluxograma que as justifique e não repassem a idéia de que perdem tempo. A produtividade do trabalho se instala no campo pessoal e tudo o que não for resultado – físico, emocional, espiritual – não interessa. Tornam tudo um bolsa de valores. Os investimentos devem retornar com lucro. E se aborrecem quando isso é frustrado.
A felicidade não pode ser uma aposta. Não é como apostar no turfe ou em uma corrida de cães. Requer mais empenho. E acompanha-a certa graça espiritual. O humor deveria ser parte integrante desse pacote sisudo que se importa com gráficos até quando dormem esses que almejam quantificar tudo o quanto tem apenas pelo que seus olhos percebem. Ah, não estou me preocupando com a correção gramatical do que escrevo; a legibilidade é o que me interessa: expor claramente as garatujas desse pensamento que repudia todo esse tédio transformado em algazarra. Toda essa inação que se traduz falsamente em brilhos, noites animadas regadas a bebidas fortes e depois um vazio. O que acaba obrigando o indivíduo a repetir indefinidamente esse comportamento em busca de saciedade – um tantalismo moderno.
Quando você for ler essas palavras não preocupe em agrupá-las em um sentido conjunto e se quiser continuar esse diálogo, não é obrigada a RESPONDER A TUDO. Somente aquilo que lhe parecer mais relevante deverá ser tratado por você em suas respostas. Se me excedi ou me embrenhei em hermetismo, me desculpe. É esse nevoeiro na cidade que impede que decolem os aviões, interpondo-se entre as minhas percepções e aquilo que as palavras podem me dar, enquanto lhe escrevo. Na certeza da continuidade desse diálogo fraterno, e, com o desejo de lhe conhecer o tesouro íntimo, encerrado em seu espírito, eu termino por aqui meu relato.
Abçs
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