Vida cachorra: o livro e a vida
Vida cachorra: o livro e a vida
Muito se fala sobre a função da Literatura, se é capaz de representar a vida ou mesmo se vai além. Pode ser as duas razões aqui exposta ou pode não ser. E mais do que isso, podemos viver, pelo menos algumas pessoas, sem o menor contato com ela, como um certo coronel, numa passagem do livro de Lima Barreto, Triste fim de Policarpo Quaresma, que se regozija dizendo que há mais trinta anos que não lia um livro. A própria ideia de “função” pode tornar-se uma grande armadilha, como se tudo tivesse disposto em uma grande engrenagem, sendo a Literatura, uma peça a mais, talvez nem tão importante assim, nesta grande máquina que é a sociedade, caminhando por si só.
Mas quando a Literatura vai além do puro deleite beletrista e busca ser a lente de uma câmera, lupa a postos na análise das ações e consequências que realizamos em grupo, no grupo e para o grupo; afinal, somos humanos e nossa grande característica é o viver em sociedade, esta arte, às vezes tão presunçosa, nos incomoda, nos interroga sobre quem de fato somos, até onde podemos ir com nossos atos, temos, então, o prazer misturado à inquietude do ato de virar a página na surpresa da palavra escrita.
É deste pequeno prazer, mas tão intenso, solitário e magnânimo para o leitor, que o novo livro de contos de Mariel Reis evoca. Trata-se do seu terceiro livro, Vida cachorra, publicado este ano, pela editora Usina de Letras (os anteriores foram: Linha de recuo, de 2006, e John Fante trabalha no Esquimó, de 2009). O próprio título anuncia que há algo difícil para o ser humano, aliás escapa da esfera do humano e segue às funções básicas do ser humano: o sexo, a sobrevivência etc. Estamos naquele plano de vista em que o olhar não alcança as altas torres dos edifícios, o céu azul encantatório, mas o rodapé das paredes, o vão entre a porta e o chão. Nos contos, os personagens, quase todos, estão em uma espécie de questionamento sobre o que fazem, sobre o que fizeram. Não é o lugar comum do mea culpa, mas a posição em que o leitor se coloca ao ouvir seus relatos, seu fluxo de consciência, não cabendo a nós o perdão, nem aos personagens a expiação da culpa. Ao leitor, testemunha solitária, cabe o incômodo de nos contos haver aquela porção de humanidade que buscamos deixar nos porões de nossas consciências, guardados e inacessíveis para os outros, mas nosso, por que, afinal, somos humanos. Este é um livro que incomoda com seus contos curtos, uma linguagem que busca o ritmo da labuta, com a ausência das letras iniciais maiúsculas depois dos pontos, como um manifesto do minúsculo, que quer dizer em seu corpo verdades que nem sempre queremos ouvir.
Marcelo Alves é escritor, professor e crítico literário
http://www.culturamix.com/
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