Cosmorama, por Máximo Heleno Lustosa. Saudades, meu amigo...

Itinerário para um prefácio breve

O convite para este prefácio é um presente e, como tal, traz uma responsabilidade: é necessário merecê-lo, todavia, amanhã.

Primeiramente, é fundamental esclarecer que sou, além de prefaciador, amigo e um homenageado (ver o belo poema “A vida breve”) do poeta Mariel Reis; logo, estou comprometido. Ainda assim, o desafio de buscar uma romântica isenção me apraz. Vejamos, então.

Em tempos tão fartos de artistas, músicos, escritores e, sobretudo, de poetas, a tão vilipendiada musa não cansa de sofrer na pena de inocentes adoradores e, ou, maus leitores de Bandeira e Drummond, que, tropeçando, em sua grandessíssima maioria, no falso prosaísmo destes ícones, constroem todo tipo de banalidades que, afoitamente, e licenciado pela liberalidade do discurso modernoso, rotulam de poesia.

Na outra banda do rio, acumula-se um portentoso grupo que, cheio de cacoetes da intelectualidade em voga, monta labirintos inexpugnáveis, construções pseudobarrocas e credita a irrealização do diálogo com o público à cratera da má formação deste. Estes artistas trabalham com o pedaço da verdade que lhes interessa. Esquecem-se bêbados da vaidade comum aos Artistas. Em suma, a deformação do público o torna incapaz para o diálogo das sensibilidades, mas, quase sempre, este diálogo é só um auto-elogio, nada mais.

Por outro lado, tirando o grupo que fala entre si e a si fomenta, há ainda aqueles que estão dispostos a justificar eternamente os novos velhos filhos de Duchamps e aplaudir mais um quadro em branco no espaço da Arte – mas, só no espaço permissivo da Arte, onde tudo é possível.

Meu amigo Mariel Reis, econômico em demonstrar seu talento de vate, oferece-nos a possibilidade de contatar outra vez a Poesia plena, incisiva, maior que qualquer discurso em seu louvor – inclusive este que aqui vai.

Já o primeiro poema, Um poema para os mortos, é hino, um tributo à musa. Sugere-nos a potência à frente. É uma voz estilhaçada e viril, “sobre o fio do mundo”, que fala “De deuses lânguidos/ E entristecidos/ Saudosos das Gomorras”.

Saudosos das Gomorras! Quanta verdade e quanta coragem neste verso! Quantos peitos não podem ser feridos com ele? Quantos pequenos deuses não estão submetidos às trinta moedas pagas por suas horas de conformação!? E, é claro!, a voz do verdadeiro poeta é o próprio Prometeu que se monta, enquanto os abutres fazem a digestão. Belíssimo!

O título do segundo poema, A vida breve, responde a seus últimos versos. A vida breve “sem resignação/ com ódio” cabe. É preciso, porém, esclarecer que este ódio é o que evita a inércia e constitui “Um som rouco,/ Estalido/De fera e domador/ Fundidos/ Em solidão.” E constitui o silêncio onde está a fera que é a vida, o cotidiano, esta caixa, e o domador, que é o poeta, o verdadeiro Artista. Na mão poeta, escrito, já está o poema.

Em “Inventário”, vejo que aquele anjo torto, e, portanto sem lugar, que costuma visitar poetas pelos tempos, passou e deixou um testamento óbvio. Mas, que forma tão cheia de poesia para entregar o óbvio!

Em “Biografia”, Mariel se permite o passeio pelo chão ingrato da poesia amorosa – e homenageia a sua musa real, que é a epifania possível dos ateus: a mulher amada. Ao término da leitura, como uma síntese axiomática do amor, leio em voz alta, e depois continuo ouvindo “sem um desejo/ a página branca acaricia/ riscando - a de tantas linhas”.

Este fechamento é prova de quem domina a obra, de quem conhece o barro de sua escultura. Este arremate permite que, ‘“grávido” de mil significados’, continuemos com o poema. Sem um desejo, a página branca risca a de tantas linhas.

São ao todo 23 poemas, incluindo uns haicais que orgulhariam a Paulo Leminski, incluindo diálogos, tão a seu gosto, com heróis como Pessoa e Drummond, claro! São 23 poemas que nos deixam satisfeitos, saciados. Em todos eles encontramos o instinto, a vontade schopenhaueriana do “animal com mil calabouços”, que “cultiva no sopro”, ou seja, mais uma vez na “voz”, e só por este sopro, só por poder soprar é que consegue “o susto/ de possuir alma leve” – e, sem paradoxo algum, ainda ser um belíssimo animal.

São 23 poemas que nos esboçam o poeta – e eu sei que ele tem muito mais. Sei que domina a pena e é irmão de Leminski, de Pessoa, Drummond, Bandeira, já citados, e de Guilherme de Almeida, que por sua vez irmana Raimundo Correa. Sei que Mariel Reis é irmão destes e de tantos outros.

E nós, terminado este breve passeio, terminamos também irmãos (siameses) ligados por um “Bilhete” de uma Arte.

Máximo Heleno Lustosa da Costa

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