Observações sobre Carta ao Pai
“A liberdade para alguns
indivíduos parece um erro da natureza. Precisam corrigi-lo pelo temor de agirem
por si mesmos”.
I.
Kafka é uma criatura despótica.
Entretanto, toda sua violência no livro mencionado soa afetiva – parece isto ao
leitor ingênuo cuja redução à vítima do redator é a perspectiva adotada. A tirania
do afeto em Kafka perpetua-se até hoje porque sua peça literária, com centenas
de edições ao redor do mundo, serve com eficácia ao seqüestro da figura
paterna. Ele, o livro, está aqui na
minha frente – feérico – e com um partido a ser tomado: o do jovem violado em
sua sensibilidade.
II.
Carta ao Pai, embora um
documento unilateral, quando relido, parecemos ouvir subjacente às suas linhas
as reprimendas do pai de Kafka. E na maior parte das vezes, na leitura dos
contos desse mesmo autor, a autocomiseração kafkiana invade negativamente a
construção da identidade paterna. Sabemos que nenhuma relação íntima é
pacífica, mas Kafka parece desejar o impossível dele, isto é, seu Pai, não
levando em conta as forças históricas e culturais que formaram aquele homem. Se
o livro constitui uma peça de acusação – e a tática da narrativa kafkiana aqui
se assemelha a de Machado de Assis em Dom Casmurro – percebemos que mais uma
semelhança é permitida: ambos os narradores desconfiam do amor possível.
III.
Kafka produz um documento
ambíguo – para sermos justos com o rapazinho inseguro que ele era. É inevitável
a atração que tem pelo pai embora pareça fazer força para contrariá-lo – e às
vezes consiga – mas não parece ser essa a sua vontade profunda. Kafka parece
disposto a capitular se um aceno por parte do Pai ocorresse em direção de sua
construção histérico afetiva. O pai de Kafka deve tê-lo percebido e como não
era um homem ignorante, porque era um negociante, talvez não quisesse acordos
com a fantasia do filho por correr o risco de torná-lo algo pior do que aquele
rapazote cheio de medo.
IV.
Kafka quer a submissão
voluntária, realiza uma expiação, exalta ao pai como uma figura mitológica. É
enganosa a carta porque parece ao leitor um movimento de libertação e
autonomia. Porém, Kafka tem uma natureza frágil e insegura. Livrar-se do pai
era abolir a segurança – a de estar o contrariando ou concordando com ele. Ali,
pelo menos, o movimento é o de um círculo inescapável.
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