Envelhecendo com elegância
‘Assis Brasil é o continuador da tradição beckettiana, optando por uma estratégia narrativa similar a obra Companhia do autor irlandês. E ambos, tanto Samuel Beckett quanto Assis Brasil -, não temo colocá-los em uma mesma frase -, discípulos literários de Franz Kafka que vivia, em si mesmo, a própria contradição engendrada pelos autores citados em suas obras’
 
Mariel Reis (marielreis@ig.com.br)
Os que bebem como cães, obra do escritor piauiense Assis Brasil, ganhador, à época, do prestigiado prêmio Walmap (1975), é aventado como a alegoria sobre o regime de exceção que se abateu sobre o país durante os governos militares. Uma alegoria sobre a opressão, como muitos costumam classificá-lo; é um modo reducionista de abordá-lo, ainda que não seja inteiramente incorreto.
Nesse período, a ficção do país era marcada fortemente por um realismo quase documental expresso em obras que, senão recriavam o romance regionalista, pretendiam emulá-lo em seu processo de apreensão da realidade. Se o procedimento resultava em obras cuja denúncia social era flagrante, isto não se poderia negar à safra daqueles autores, percebia-se um declínio imaginativo.
A arquitetura dos romances estava fortemente engajada no status quo realista, a literatura era presa ao factual, ao jornalístico, e a linguagem privilegiava a referencialidade. O modus operandi da literatura praticada no período produziu obras importantes, porém de relativo valor estético. Os críticos dividem-se quanto aos seus lugares dentro do panorama da literatura brasileira e de sua história. Embora não neguem que a denúncia presente nos livros de escritores como José Louzeiro (Araceli, meu Amor, Em Carne Viva), Aguinaldo Silva (Crime Antes da Festa), Valério Meinel (Porque Cláudia Lessin Vai Morrer) cumpriram um papel histórico junto ao tempo presenciado por seus autores.
Os que bebem como cães, livro-denúncia, dribla com elegância a linguagem referencial e se instala, de imediato, no plano da literatura sem o entrave dos demais. A lição do absurdo é assimilada, restando ao romancista armar-se através do narrador que vive em uma cela em completa escuridão, na quase imobilidade. Quando abandona a cela para lavar-se no pátio não pode olhar para os lados. É-lhe proibida a visão de seus próprios companheiros de infortúnio. A passagem do tempo é marcada através da satisfação das necessidades anímicas.
Assis Brasil é o continuador da tradição beckettiana, optando por uma estratégia narrativa similar a obra Companhia do autor irlandês. E ambos, tanto Samuel Beckett quanto Assis Brasil -, não temo colocá-los em uma mesma frase -, discípulos literários de Franz Kafka que vivia, em si mesmo, a própria contradição engendrada pelos autores citados em suas obras.
A crítica brasileira tem sido rancorosa com a obra de Assis Brasil, porque não lhe abre o espaço merecido para aquilo que produziu de melhor dentro do panorama de nossa ficção. Talvez a birra se deva ao volume da obra do autor piauiense. A copiosa produção do inquieto autor incomoda àqueles que insistem em mistificar a literatura como um território repleto de mistérios, vedado para os incautos e apenas destinado aos iniciados. Entretanto, se lhe faço também restrições, não podemos esquecer a sua contribuição crítica. Escreveu sobre Faulkner e Joyce, Adonias Filho e Clarice Lispector como um ensaísta memorável. E, se encarregado da republicação de seus romances, não hesitaria em trazer de volta aos catálogos das editoras: Beira Rio, Beira Vida e o próprio romance Os que bebem como cães. Dois livros de leitura obrigatória a todo candidato a escritor.
A Tetralogia Piauiense está cercada de polêmicas sobre suas personagens. São reais ou não? São tiradas diretamente da realidade ou inventadas? A verdade é que não se pode negar a transfiguração operada pelo romancista, da passagem de todos eles de um meio para o outro. Porque se existem, não podem ter todas as nuanças sugeridas pelo autor e, mesmo, as idiossincrasias. E se não o possuem, não são mais as mesmas personagens. São seres autônomos, errantes na ficção de Assis Brasil. A literatura alimenta-se da realidade e vice-versa. Ambas inventam-se continuamente em uma relação autofágica.
A obra de Assis Brasil, a parte essencial, envelhece com elegância. Hoje os rastros dessa literatura estão espalhados por toda a parte. Outro dia mesmo lia os contos de certo autor contemporâneo. Entre os relatos havia um intitulado Capuz.  Narrava a história de um homem seqüestrado, obrigado a ficar com a cabeça coberta o tempo todo, sem distinguir o dia da noite. O   indício de sua a humanidade era marcado pelo horário da refeição... Ao término da leitura, sorri. E disse para mim mesmo: “Olha o Assis aí "
 

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