As Minhas Encarnações Queridas
A minha vida anterior – a minha encarnação passada – é uma incógnita. Uma amiga leitora me pediu para arriscar alguns palpites, porque seria curioso ver como me comportaria diante de um desafio dessa natureza, imaginar o que eu teria sido. Aleguei minha falta de imaginação, porque não conseguia me conceber de outro modo, diferente do que sou agora, o que já é uma incrível viagem se analisarmos toda a coisa por esse prisma. Por que tenho esse nariz? Os olhos quem os colocou dessa forma? Por que não tenho membros maiores – isso inclui trocadilhos infamantes, está certo, leitor querido. Então, comecei a curtir a idéia e seduzido pela proposta, resolvi me concentrar para chegar a regiões profundas do meu inconsciente – onde dizem estar todas as informações guardadas a esse respeito – para acessá-la, descobrindo a resposta para o pedido da leitora.
Há teorias encarnatórias em que o individuo pode passar por várias fases: desde a mineral à humana. Aproveitei o gancho que elas possibilitam para emendar que nesta era tecnológica minha primeira lembrança – ou aquela que se livrou do soterramento do meu inconsciente – é a de que fui uma torradeira Kenwood americana. É a lembrança mais doce por estar associada à rotina de uma família em um hemisfério do planeta tão inóspito aos estrangeiros. Só que naquele tempo, eu estava integrado a esta rotina, minha ranhura ajustável, minhas opções de tostagem – 7 opções se bem me lembro – ajudava toda família no caminho da felicidade matinal. As mãos delicadas e firmes da dona de casa, branca, com um coque louro, sardas nas maçãs do rosto, me seguravam para levar para o mármore alvo da pia onde realizava o meu trabalho, pontualmente.
Nesse período não concebia outra felicidade, talvez não existisse mesmo; as crianças descongelavam o pão, mirando como diante de um milagre o aviso de que estava pronto quando as fatias saltavam do meu interior. A minha vida – útil – terminou em uma tarde ensolarada, a dona da casa se arrumava para sair, penteava o cabelo com o rosto espelhado em meu corpo de aço escovado, refletindo tão nitidamente as marcas em torno dos olhos, as orelhas enfeitadas com brincos, a boca besuntada de um batom avermelhado, chegando ao exagero, quando bateu aquela fome inesperada, a dona da casa decidiu fazer uma torrada. Minha resistência não agüentou à emoção de vê-la tão bonita. A partir desse fato, não me lembro de mais nada, minha consciência se apagou.
Quando recobrei a consciência, meus olhos despertos se percebiam em um outro corpo, mais fino, cilíndrico, com uma cor vibrante, nas mãos também de uma mulher, que examinava com cuidado a minha extensão, perguntava sobre o uso de pilhas, número de velocidades, se não era perigoso. A vendedora afirmou que não tinha perigo nenhum, a segurança do produto estava garantida, que se ela tivesse qualquer problema, poderia trocá-lo por outro artigo. Presumi que eu era uma faca elétrica, isto se quisesse enfileirar logicamente minhas memórias sobre minhas encarnações anteriores e segundo teorias conservadoras que rezam que voltamos à existência na mesma casta espiritual em que nos encontrávamos – isto é, objetos de uso eletrodoméstico, especificamente na cozinha. O meu engano foi enorme, porque a mulher negra pagou um preço exorbitante e deu um risinho safado para a vendedora, prometendo ter noites inesquecíveis na minha companhia. Já podem imaginar que tipo de coisa eu me tornei. A minha última lembrança nessa forma corpórea é a de uma grande orgia de mulheres, que me passavam de mão em mão, enlouquecidas. Não resisti ao uso contínuo, esta advertência na minha embalagem não fora respeitada. A mulher negra lamentou muito a minha morte.
As lembranças desprendidas do meu inconsciente nem sempre eram agradáveis como essa. Às vezes ocorriam memórias como a de ser a tigela de comida de um filhote, com dentes afiados, que para se educar a respeito de sua força, mordia toda a beira da cuia. Outras vezes, por encarnações deprimentes, como a seringa de um drogado, descartada depois do uso em uma lata de lixo qualquer de um grande centro; algumas como o travesseiro que embala o sono inocente de uma menina de olhos puxados em uma terra tão distante que não recordo o nome exatamente; a mais bonita foi quando me tornei uma nuvem resmungona, porque a altura onde eu residia o vento era frio me causava um incomodo desgraçado e não loja especializadas de casacos para as pobrezinhas que estão sobre as nossas cabeças sujeita a se esgarçarem caso algum avião maldoso cisme em rompê-la em sua travessia. O melhor de ser uma nuvem era a fina chuva do verão, quando se uníamos para as traquinagens de lançar os pingos de água sobre os transeuntes.
O contato com corpo masculino – talvez a minha maior provação em minha migração encarnatória. É melhor pular essa parte, porque não quero ouvir gracinhas dos leitores mais espertinhos e pouco espiritualizados que passarem por aqui. A minha leitora deve estar satisfeita com a descrição pouco épica de minhas vidas passadas, imaginando que hoje estou melhor sendo quem sou e como sou. Nesse último instante, a lembrança de ter sido um general me assalta a mente, forte e nítida, diante pelotões perfilados, todos sob meu olhar, sob a vigilância de minha inspeção. Quando surge enorme um garoto com a cara rosada, recolhendo para uma caixa enorme todos os bonecos espalhados sobre o piso, resolvendo ir brincar no quintal.
Há teorias encarnatórias em que o individuo pode passar por várias fases: desde a mineral à humana. Aproveitei o gancho que elas possibilitam para emendar que nesta era tecnológica minha primeira lembrança – ou aquela que se livrou do soterramento do meu inconsciente – é a de que fui uma torradeira Kenwood americana. É a lembrança mais doce por estar associada à rotina de uma família em um hemisfério do planeta tão inóspito aos estrangeiros. Só que naquele tempo, eu estava integrado a esta rotina, minha ranhura ajustável, minhas opções de tostagem – 7 opções se bem me lembro – ajudava toda família no caminho da felicidade matinal. As mãos delicadas e firmes da dona de casa, branca, com um coque louro, sardas nas maçãs do rosto, me seguravam para levar para o mármore alvo da pia onde realizava o meu trabalho, pontualmente.
Nesse período não concebia outra felicidade, talvez não existisse mesmo; as crianças descongelavam o pão, mirando como diante de um milagre o aviso de que estava pronto quando as fatias saltavam do meu interior. A minha vida – útil – terminou em uma tarde ensolarada, a dona da casa se arrumava para sair, penteava o cabelo com o rosto espelhado em meu corpo de aço escovado, refletindo tão nitidamente as marcas em torno dos olhos, as orelhas enfeitadas com brincos, a boca besuntada de um batom avermelhado, chegando ao exagero, quando bateu aquela fome inesperada, a dona da casa decidiu fazer uma torrada. Minha resistência não agüentou à emoção de vê-la tão bonita. A partir desse fato, não me lembro de mais nada, minha consciência se apagou.
Quando recobrei a consciência, meus olhos despertos se percebiam em um outro corpo, mais fino, cilíndrico, com uma cor vibrante, nas mãos também de uma mulher, que examinava com cuidado a minha extensão, perguntava sobre o uso de pilhas, número de velocidades, se não era perigoso. A vendedora afirmou que não tinha perigo nenhum, a segurança do produto estava garantida, que se ela tivesse qualquer problema, poderia trocá-lo por outro artigo. Presumi que eu era uma faca elétrica, isto se quisesse enfileirar logicamente minhas memórias sobre minhas encarnações anteriores e segundo teorias conservadoras que rezam que voltamos à existência na mesma casta espiritual em que nos encontrávamos – isto é, objetos de uso eletrodoméstico, especificamente na cozinha. O meu engano foi enorme, porque a mulher negra pagou um preço exorbitante e deu um risinho safado para a vendedora, prometendo ter noites inesquecíveis na minha companhia. Já podem imaginar que tipo de coisa eu me tornei. A minha última lembrança nessa forma corpórea é a de uma grande orgia de mulheres, que me passavam de mão em mão, enlouquecidas. Não resisti ao uso contínuo, esta advertência na minha embalagem não fora respeitada. A mulher negra lamentou muito a minha morte.
As lembranças desprendidas do meu inconsciente nem sempre eram agradáveis como essa. Às vezes ocorriam memórias como a de ser a tigela de comida de um filhote, com dentes afiados, que para se educar a respeito de sua força, mordia toda a beira da cuia. Outras vezes, por encarnações deprimentes, como a seringa de um drogado, descartada depois do uso em uma lata de lixo qualquer de um grande centro; algumas como o travesseiro que embala o sono inocente de uma menina de olhos puxados em uma terra tão distante que não recordo o nome exatamente; a mais bonita foi quando me tornei uma nuvem resmungona, porque a altura onde eu residia o vento era frio me causava um incomodo desgraçado e não loja especializadas de casacos para as pobrezinhas que estão sobre as nossas cabeças sujeita a se esgarçarem caso algum avião maldoso cisme em rompê-la em sua travessia. O melhor de ser uma nuvem era a fina chuva do verão, quando se uníamos para as traquinagens de lançar os pingos de água sobre os transeuntes.
O contato com corpo masculino – talvez a minha maior provação em minha migração encarnatória. É melhor pular essa parte, porque não quero ouvir gracinhas dos leitores mais espertinhos e pouco espiritualizados que passarem por aqui. A minha leitora deve estar satisfeita com a descrição pouco épica de minhas vidas passadas, imaginando que hoje estou melhor sendo quem sou e como sou. Nesse último instante, a lembrança de ter sido um general me assalta a mente, forte e nítida, diante pelotões perfilados, todos sob meu olhar, sob a vigilância de minha inspeção. Quando surge enorme um garoto com a cara rosada, recolhendo para uma caixa enorme todos os bonecos espalhados sobre o piso, resolvendo ir brincar no quintal.
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