Uma Natureza Duplicadora Ou Pós-Modernidade




Um carbono. Tudo o que se lhe imprimisse, copiaria fielmente. Nada faltaria, nem vírgulas, nem pontos. Eu não suspeitava que tivesse ao meu lado um surrupiador de ideias, alguém que se me aproveitasse do meu único tesouro: a minha inteligência. Não que esta fosse larga ou que a todo instante produzisse sensações acerca dos assuntos dos quais se alimentava, isto não seria verdade se lhe afirmasse; tampouco arrisco subestimá-la naquilo que de concreto acumulou e pôde passar a frente com franqueza e convicção aos outros em conversas despretensiosas no bar ou no telefone em que me demorava horas em dissertações infinitas até mesmo a respeito de coisas ordinárias que não ocupariam um espírito dito sério.

Tenho comigo essas considerações agora, porque na época, não me passava pela cabeça o assalto intelectual do qual era vitimado por essa natureza que julgava sensível, atenciosa e romântica. Sem me dar conta de que sofria de carência de ideias próprias, mantinha, sem reservas, uma comunicação direta daquilo que me ocorria, sem encontrar censura, prosseguia com meus pareceres, que às vezes me soavam desencontrados; mas a essa natureza não lhe emprestava importância, porque sorvia cada palavra como água a um viajante que passasse sede. Isto me lisonjeava bastante, atribuía-lhe uma educação esmerada por bom ouvinte e me negava a crer por suas interlocuções, mínimas, que pontuasse os meus argumentos apenas para que não me calasse, exortando que me enfiasse na fieira caudalosa das alegações de que dispunha, sem interrupção.

 Depois disso, com um ar aborrecido ou com uma ou outra desculpa qualquer, despedia-se de mim, prometendo-me voltar a vê-lo na semana vindoura e desaparecia até nosso próximo encontro. Nesse ínterim, porém, tratava de minhas coisas. É certo que me alegrava por ter um espírito que apreciasse a minha companhia e também as minhas ideias, isso me provocava a vaidade. E eu não descansava em minhas investigações, durante minhas leituras e observações, nos diversos livros, enquanto não esbarrasse em algo profundamente original para contentar minha visita com a descoberta. Verdade também que enquanto me dispunha a descobertas desse tipo, não descuidava dos afazeres cotidianos.

 Pela manhã, caminhava longamente, meditativo, com meus cães, pelas calçadas; após essa rotina, voltava para casa, tomava banho, preparava-me para o café e a leitura do jornal; em seguida, atinha-me aos compromissos profissionais. Isto se estendia até quase a hora do almoço, quando não me metia em reuniões aborrecidíssimas que se esticavam até parte da tarde, quando o apetite já se fizera distante, sobrando tempo apenas para um lanche. O encontro com os amigos em um café para atualizar-me das notícias e mexericos, que não durava mais que trinta minutos, punha-me de volta a caminho para não me atrasar para o jantar.

 Se não havia nada de heróico nisso, não constituía nenhuma anormalidade.

 Foi por essa altura que tornou a me visitar a natureza da qual me ocupo neste relato. Estava impecável em um terno feito sob encomenda, tinha os modos afetados, a fala um tanto arrastada, como simulação de enfado, e me dizia que tinha sobre os ombros muito pesar pela humanidade, não sabia em que desembocaria todos os nossos esforços, se somos levados de roldão para a morte e não adiantava mesmo lutar, se afinal conhecíamos bem como toda a história acabaria... Consolei-o do pessimismo e expliquei-lhe as razões que levaram o malfadado filósofo a dar vazão a essas palavras.

 Se bem que estivessem trocadas em algo no discurso com que me brindava, pressentia-se certa auréola de cristandade que se escondia naquilo que parecia dizer, o que não combinava com o alemão que tinha comido o pão que o diabo amassou, sendo produto disso sua desilusão com todo o resto.

Acabei por explicar que a maioria da filosofia que está por aí constitui e. Já não me dava mais ouvidos. Isso já se sabe, afetava. Sabia que tudo o que se pensa tem raízes profundas no íntimo daquele que engendrou a filosofia e isso mal se disfarçava, quando se procurava embutir tal ideia a esse ou aquele pensador, do período helênico ou moderno, para garantir-lhe a validade do que se pensa. Caso contrário, não passariam de remorsos bem escritos. A isso deu máxima atenção, porque lhe era nova a minha abordagem sobre a matéria filosófica.

 Daí tudo transcorreu como dantes. Pôs-me a par das aventuras que tinha realizado, das ideias que lhe tinham sucedido e da intenção de casamento que estudara minuciosamente com uma pequena da Tijuca. Pareceu-me saudável. A nossa despedida nesse dia demorou-se mais do que de costume. Soube do casamento através dos jornais; a pequena com que havia se casado pertencia a uma família tradicional. Ali se noticiava que passariam a lua de mel na Europa.

 De lá, a natureza curiosa desse meu amigo, me escrevia.  Divertia-me com suas cartas longuíssimas em que me contava detalhadamente sobre as construções de catedrais ou a respeito de uma praça ou algo sobre uma figura pública; dava-me novidades sobre a vida do casal, de que a mulher lhe era compreensiva, que não lhe pesava que não passasse com ela todo o tempo, que lhe perdoava as perambulações pela noite.

 Em suma, descrevia-me o paraíso e pontuava: se soubesse que era isto o casamento, já o teria realizado há mais tempo. Seguiram-se correspondências de igual teor durante muito tempo, porque se decidiu fixar-se por lá, estabelecer-se. O que não era mau, porque o pai da esposa possuía negócios em Portugal, não estaria desamparado. A minha vida continuava a mesma. Interessei-me por uma pequena das vizinhanças e juntamos os trapos. Nasceram-me dois filhos.

 As cartas escassearam tanto, que me assustei pela mudez do meu interlocutor. Escrevi pedindo notícias.

 E, para meu espanto, a resposta não tardou a chegar. Não me respondia o amigo com o qual privara durante todos esses anos, mas a sua mulher. Não eram boas as notícias, preparava-me o espírito. Informava-me que ele, seu esposo, havia morrido. A revelação anuviou-me os sentidos. Prossegui a leitura da missiva que me esclarecia mais ou menos o seguinte. Meu amigo era um homem-carbono, essa era a única ideia que lhe tinha - a esposa - ocorrido para me comunicar a sua capacidade mimética. Quando ela o conheceu, garantiu-me, em tudo era um poeta. Para comprovar o que me dizia, mandou-me dois sonetos da autoria de meu amigo. Com o tempo percebeu-lhe as alterações pelas preferências.

 Debruçava-se sobre política, sobre esporte, sobre ciências naturais. Tomava as inclinações do marido como propensões intelectuais de um homem capacitado, de um indivíduo superior, que se punha a falar como um expert sobre qualquer coisa, nada parecia fugir de seu domínio. Ela dizia-se encantada com sua vivacidade e orgulhava-se dele. Contudo, desconfiava da sabedoria natural que despontava do esposo. Ou era um caso de uma genialidade que prescindia do contato com os livros, como que inata ou um milagre que ele, o meu amigo, realizasse. Ou não arriscava supor...

 Deveria ele ser famoso no círculo que frequentava, a esposa supunha, por ser uma sumidade, esbanjar vitalidade nas análises sejam estas quais fossem. Um dia, ela lembrava, chegou em sua casa, ainda na Tijuca, com a mente transtornada por determinadas ideias sobre a literatura que a impressionaram muito. E discorreu sobre a tal ideia com veemência; causou furor sobre os espíritos que ali estavam. Reconheci imediatamente as minhas palavras sobre aquilo que, propalado por meu amigo, despertara furor nos circunstantes.  A esposa, nesse dia, exultou-se, porque se casara com um homem perspicaz, com uma inteligência penetrante. Os seus pais acatavam com muito gosto o casamento e o resto, como a esposa do meu falecido amigo diz, são águas passadas.

 No enterro pôde conhecer o círculo do qual o marido fazia parte. Todos lhe apresentaram as condolências e se ocuparam em acompanhar toda a cerimônia fúnebre, não sem a ruidosa palestra comum entre eles. Ela, como procurando encontrar o marido naquilo que palestravam, resolveu interrogá-los sobre a participação do marido nas tertúlias. E todos foram unânimes: discreta. Isso lhe pareceu mesmo um comportamento adequado a um gênio. Ao final, um deles, apiedado pela desolação da viúva, não sem um travo de maldade, procurou vingar-se do morto, particularmente e da pior maneira.

Ele, o morto, asseverou o homem vingativo à viúva, não era lá isso o que você crê e não se perde muito com sua morte. Antes, tínhamos todos tremendo respeito por seu marido. Enquanto nossas relações não podiam estabelecer-se conjuntamente, tínhamos nele um gênio, porque traficava aquilo que cada um de nós pensava em particular para o outro que ainda a respeito desconhecia.  Tudo aquilo que lhe tocava sensibilidade tomava a repetir como se seu fosse, quando na verdade pertencia a outrem. E em nós afirmava-se a certeza de estar diante de um espírito iluminado, universal. Quando, em verdade, estávamos diante de um homem-carbono. Com todo meu respeito, disse o cavalheiro a ela, permita-me uma pergunta: Algum dia inquiriu a esse homem, a quem você chamou de marido, se a amava de fato e, se em positivo, o que lhe respondeu? Ela, envergonhada, percebeu o logro.

Comentários

Leonardo Brum disse…
Bem interessante... Tem por aí muitos homens-carbonos, homens-Ctrl+C Ctrl+V etc.

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