Etiqueta Equivocada


1-Os manuais de etiqueta, na maioria das vezes, são inúteis para os homens comuns quando sofrem: os velórios são pungentes, repletos de palavras desencontradas e acusações. Por vezes, ali mesmo, no cemitério, degeneram em violência por diversas razões.

 2-O homem público abdicou de si, preferiu o corpo a corpo com a multidão, treinou-se para lidar com as contradições dela, portanto, diante do homem comum, ele perdeu certa espontaneidade, porque sabe a influência - positiva ou negativa - de sua ação.

 3-Por exemplo, no enterro do cantor Orlando Silva, ou no do escritor Machado de Assis, percebemos o forte componente emocional envolvido em tais figuras. Outro enterro eletrizador das multidões foi do ex-presidente Getúlio Vargas, que, apesar dos fatos de sua morte, aproveitou-os, em um teatro macabro, para capitalizar o próprio suicídio. Concorde-se ou não com os seus motivos, expostos numa explosiva carta -  testamento.

4-Não é nova, portanto, a apropriação política de funerais, embora, vista estritamente, parece não ser ética. Porém, o homem público não está mais ligado às questões comezinhas do homem comum que, se sofre com algazarra, algumas vezes, sabe também sofrer com discrição.

 5-A mentalidade do homem público não o permite mais enxergar a sua própria vida como algo individual, nem seus gestos como particulares: quer emprestar a tudo grandeza – muitas vezes patética –, mas que desaguará, ele almeja, na construção do mito. O homem público não é mais um homem, ele quer encarnar um personagem.

 6-Lula, ex-presidente, no velório de D. Marisa, em São Paulo, parece o exemplo acabado do exposto: aproveitou o velório da esposa para fazer política. Em uma forte cena de impacto emocional, sabendo da repercussão de cada ato pela imprensa, escandiu, diante da amada, um discurso em que prometia justiça contra a perseguição sofrida pelo casal que, segundo ele, culminou, devido ao desgaste, com a morte dela. “Os facínoras deveriam ter a humildade de pedir desculpas a Marisa”, parece ter dito do alto de uma representação shakespeariana.

7-Nas redes sociais, o gesto, repleto de cálculo, parece ter tido o efeito esperado: inúmeros textos aprovando Lula. Talvez não apenas da militância, porque o Brasil é marcado pelo gosto da telenovela. Nas ruas, românticos incuráveis viam no gesto assinalado a marca predestinatória: apesar dos perseguidores, mesmo na morte, Lula e Marisa vencerão. Afinal, o casal não é a nossa versão política de Romeu e Julieta?


8-De fato, não existem manuais para o sofrimento alheio, nem mesmo um limite para a capitalização do que for para proveito de um partido ou de um homem. Carlos Lacerda parece o exemplo mais acabado do que tenciono dizer. Porém, no butim da realidade, mesmo para alcançar o almejado para si, o megalomaníaco, se fosse capaz, deveria criar entraves à sua própria personalidade, porque, para salvar a si mesmo da dissolução, não hesita em tragar o que estiver à volta. 

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