Cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima” Amadou Hampâté Ba




A frase acima é do escritor malinês Amadou Hampâté Ba que realizou um trabalho etnográfico nas tribos da África registrando a importância da cultura oral e a sua transmissão através dos mais velhos para os mais novos. A restrição de que apenas o “ancião”, por ter vivido mais, detenha a experiência e, portanto, a verdade sobre os fatos - não apenas de si mesmo como de sua tribo -, desprezando a possível contribuição dos mais novos (negando-lhes talvez a subjetividade), fez com que, em minhas reflexões, a sentença fosse mudada: “As pessoas que morrem são bibliotecas que desaparecem”. Eis a minha reformulação, optando por não torná-la restritiva, quando se refere apenas ao “ancião” como repositório de sabedoria e de conhecimento, porque, via de regra, todos nós possuímos acerca da existência uma posição e uma tomada de consciência, mesmo que inconsciente, mas trazendo os discursos marginais para o centro.

Amadou Hampâté Ba não é um niilista, porque as cinzas da biblioteca queimada servirão de adubo ao solo para a germinação do novo no território antes arrasado. Em certas regiões, a urina misturada a cinza serve como fertilizante para o plantio. A renovação está intrínseca. Isto faz do poeta um otimista cuja crença em um ciclo fará com que a memória seja sempre preservada entre os integrantes da tribo, preservando a sua homogeneidade e integridade cultural, repassando a frente seus valores e tradições, sem prejuízo maior em sua totalidade. A minha paráfrase não reserva tanta esperança quanto a frase original de Amadou Hampâté Ba, porque se baseia, objetivamente, em uma realidade matemática e menos metafísica. O poeta John Donne pondera “A morte de cada homem diminui-me”, como sói acontecer comigo. E se este homem, que não precisa pertencer a uma população ágrafa da África ou da Ásia, não garantir a perpetuação de si mesmo através dos mecanismos da escrita, de um modo geral -, ele estará perdido.

Os testemunhos poderão resgatá-lo, reacendê-lo em seu aspecto mais pitoresco, no entanto, não o colocarão de pé para ser exibido, visto e escutado por nós. Daí a diferença entre a minha frase e a de Amadou Ba. Na minha frase uma operação negativa se efetua. Esta não se alterará com o nascimento de outra individualidade, com o acréscimo de sua subjetividade ao mundo, mesmo importante dentro do contexto em que estará inserida. O homem que se perdeu levou consigo uma experiência particular de sua caminhada dentro da humanidade, enfatizando-se a sua existência histórica, circunscrita e temporal. E se ele, o homem, se ausenta ou desaparece não há como invocá-lo ou apoderar-se de sua essência como nos ritos anotados por inúmeros etnógrafos da religião.

A acusação de plágio não é o que me incomoda, mas o desconhecimento de que discursos migram dentro da cultura e uma ideia pode aparecer duas vezes em lugares diferentes e na cabeça de homens opostos. O caso de Leibnitz e Newton é exemplar do comportamento de uma ideia. No entanto, não me esquivo em responsabilizar-me pela ocorrência da ideia e de sua familiaridade, presente em brasileiros de diversas estirpes como Paulo Freire, Leonardo Boff, entre outros. A minha confissão de leitura recai sobre o primeiro e o modo de alfabetização universalista que considere o mundo e as pessoas como narrativas/riquezas. O crédito deverá ser dado, para abonar a minha suposta desonestidade intelectual, a Amadou Hampâté Ba, descoberto em minhas aulas de Antropologia e História na UNIRIO, não por conta da instituição; mas a leitura de suas poesias que foram a porta de entrada para os seus ensaios.

Aos idiotas da subjetividade que teimam, mesmo em tempos pós-modernos, em encontrar na paráfrase o plágio de Amadou, sugiro a leitura do livro de Afonso Romano de Sant’anna sobre o assunto, se a explicação acima for insuficiente. Lembrando que a minha frase foi dita em uma palestra dada por skype no Centro de Convivência Textual, portanto não acreditava credenciá-la a um autor que não fosse eu mesmo. Todavia a discussão me lançou a reflexão de quando havia me deparado com a sentença, e antes que se instalasse a balbúrdia, atribuindo a outrem o DEVIDO, esclareço que mais do ninguém Amadou Bâ merece ser respeitado, lembrado e, talvez, lido. Ele, por certo, não discordaria que essencialmente afirmamos algo parecido, embora em pólos diferentes, reconsiderando o substantivo, mas nunca a esperança. Talvez esta seja a diferença entre nós.

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