Devolver

Embora contrário a idéia de festa, fui ao casamento do meu irmão, receoso de que a suntuosidade representasse uma ofensa às inúmeras mortes em minha família. A morte é melhor quando só. E para compreendê-la, aceitá-la ou ignorá-la – porque apenas se pode ignorá-la refugiando-se no campo das lembranças -, também é preciso estar só. Em uma solidão tão completa em que a consciência possa dialogar profundamente consigo mesma, capaz de alcançar esse outro, que já não existe. Ou se existe, está entrincheirado nas recordações. Quanto maior a recordação, mais vivo ele estará. Circulará por ela através de nosso próprio sangue. Viajará pelos hemisférios de nosso corpo. Talvez a morte, nesse momento, não exista. E ninguém tenha morrido. A realidade insiste em contrário: a casa vazia, as roupas murchas, um jeito que desapareceu e não voltará mais. A recordação, se não for grande, o afeto, se não for verdadeiro, serão engolidos pela enxurrada de sentimentos negativos e a incapacidade de mudança dos fatos. Engolfados morreremos juntos do que amamos, mesmo parecendo vivos e razoáveis.

O receio de minha irmã transferiu-se ao meu espírito. Armado de certezas morais, tornei minha a sua contrariedade. A igreja ficava na esquina onde o meu irmão fora morto. O mal-estar estabelecido dentro de mim e o julgamento de inadequação do casamento. Isto se comunicava entre nós, estabelecia-se. Verdade? Esforçava-me por acreditar nela, invocando adjetivos dolorosos. Impunha-me penitência por estar relaxado naquele lugar. Então me deparo com o salão vazio. E irmão mais velho, me lembrei de quem era o meu irmão que casava. Voltou à minha memória: a miséria, a casa com goteiras, a falta de comida, de roupas e de calçados. Não resisti, chorei. A mesma miséria estava naquele casamento, celebrado às pressas, próximo ao Natal. O casamento tão pobre como os presépios que habitam milhares de casas nessa época. Ele, meu irmão que casava, não tinha conhecido felicidade, igual a todos nós. Não tinha conhecido conforto, feito todos nós. Não tinha conhecido trégua. O meu corpo reacendeu-se com a percepção. O receio cedia lugar à iluminação, súbita. A cerimônia havia começado.

A igreja vazia, no máximo quinze pessoas. A solidão de meu irmão desamparado, sem saber o que fazer, dissipou a impressão negativa colhida na conversa com a minha irmã. Ele continuava menino, desprotegido e sem forças. Quando a chuva caía violenta sobre os telhados da casa de minha infância tinha que pegá-lo no colo e cantar uma música improvisada para que seu choro cessasse. No altar, ele sozinho em sua encruzilhada. Procurava algo que seria apenas dele, mesmo maculado. Pedira à minha irmã para entrar com ele na igreja – neste ano dos mortos, minha mãe morrera. Ela se recusara. E lá ele, os olhos banhados. Os casais de padrinhos do noivo e da noiva em seus lugares. A cerimônia prosseguia. Os noivos no púlpito. Refleti: minha mãe sempre quisera ver os filhos casados. Ele realizava, desastradamente, o pedido materno.

Desceram casados. O último espetáculo seria a festa. Em minha conversa com minha irmã falávamos de respeito e outras palavras graves para reprová-la. Fomos ao galpão empoeirado, local de reuniões, transformado em salão festivo. Sem ar condicionado, com cadeiras desconfortáveis, sem mesas. Nenhum luxo. Refrigerantes de marca popular, salgadinhos comprados a quilo e um bolo. Outra vez a lembrança de que ele, o meu irmão casado, nunca tivera uma festa, não estudou, nem teve roupas ou calçados. A pobreza havia nos subtraído. Olhei para ele vestido garbosamente. Talvez seja a única vez que poderá vestir-se assim. Minha irmã parecia chegar às mesmas conclusões, embora resistisse lhe dar ouvidos: acicatada pela morte dos irmãos, da mãe e do próprio filho. Chorei. Quando aquilo acabasse, ele teria que entregar a roupa alugada. Nada era dele. Nada é nosso. Algo difícil de compreender. Mais ainda quando é chegada a hora de devolvermos tudo o que recebemos. Até nós mesmos.

Comentários

Fred Oliveira disse…
Reitero a satisfação com a leitura desse texto.

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