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Mostrando postagens de setembro, 2007

E Por Falar em Saudade...

Para Mara Coradello, PARA UMA ESCRITORA, VITÓRIA Navego na linha tênue do futuro. E lá uma saudade berra sem fim.Berra porque não há outro meio para que a cidade aconteça dentro de mim.Não sem seus exageros, seus complicados aforismas, sem suas saias plissadas, sem o vendedor de amendoim, sem a estranha preferência pela Prefácio, quando existem outras livrarias maiores para abrigarem nossas angústias. E o berro como aquele lançado por uma parente distante, de linhagem nobre, o Quincas, dói em mim como lua minguante nascendo da goela do peixe-homem. Fisgado por seus mistérios, e luares. Pela dança tropega de quem tomou táxi para Viena d'Áustria como música barroca derramada aos ouvidos e a cabeça tombada em ombro com mil sonhos efusivos formando ciclones que me arrastavam. E na breve cisão que o tempo causará (pois breve, não há intervalo no pensamento), resgatarei comigo o nome de pratos complicados degustados augustamente e maramente em restaurantes em que tive de ser salvo da fúr

Cativeiro Amoroso e Doméstico

Talvez Camões tenha composto para Dinamene, a chinesa, que não se salvou do naufrágio de que o poeta foi sobrevivente. Por minha vez o dedico àquela que me tem cativo porque nela vivo : Aurea. Endechas a Bárbara escrava Aquela cativa Que me tem cativo, Porque nela vivo Já não quer que viva. Eu nunca vi rosa Em suaves molhos, Que pera meus olhos Fosse mais fermosa. Nem no campo flores, Nem no céu estrelas Me parecem belas Como os meus amores. Rosto singular, Olhos sossegados, Pretos e cansados, Mas não de matar. U~a graça viva, Que neles lhe mora, Pera ser senhora De quem é cativa. Pretos os cabelos, Onde o povo vão Perde opinião Que os louros são belos. Pretidão de Amor, Tão doce a figura, Que a neve lhe jura Que trocara a cor. Leda mansidão, Que o siso acompanha; Bem parece estranha, Mas bárbara não. Presença serena Que a tormenta amansa; Nela, enfim, descansa Toda a minha pena. Esta é a cativa Que me tem cativo; E. pois nela vivo, É força que viva. Quem é Luís Vaz de Camões? Luís Vaz

John Fante Trabalha no Esquimó

Remake que vale a pena: Durante um período eu me perguntava como poderia reconhecer na rua os meus escritores prediletos, em um jogo de adivinhação, traçava quais características teriam e como se apresentariam aos meus olhos, porque perscrutava os rostos alheios tentando descobrir neles semelhanças com o escritor que desejaria ver naquele momento. O jogo começou quando consegui o meu primeiro emprego de office-boy no Centro do Rio de Janeiro. Andava pelas ruas,examinando atento cada passante e anotava onde e quando topei com ele e com qual escritor se parecia,e montava um pequeno perfil do transeunte como um retrato 3x4 para manter acesa na minha memória a necessidade desse encontro e o sonho de um dia cruzar, mesmo que com um sósia, com Lima Barreto ou Machado de Assis ou João do Rio ou qualquer outro escritor estimado. Assim o homem da banca de jornal em frente ao edifício São Borja, na Avenida Rio Branco, se tornou Jamil Snege. O caixa do restaurante Esquimó, onde eu fazia as refeiç

Tropa de Elite

A iluminação da rua é precária. A casa está a duzentos metros. O telhado baixo. A pequena varanda com a lâmpada emitindo uma coloração amarela, rodeada por uma nuvem de cupins, a sonolência do cachorro que não liga para a minha aproximação, o barulho de um televisor ligado na casa vizinha, indicando que é hora da novela, talvez à das oito, porque uma menina começa a berrar “Eu quero ser a Bebel, mãe! Eu quero ser a Bebel!”. E imagino a cena: a menina de pé em cima da mesa, com as mãos na cadeira, rebolativa, como se estivesse no palco de um baile funk. A mãe briga. A menina se esgoela. Caminho com mais pressa, já é tarde. Não recordo bem o endereço da casa. Só o aspecto acanhado da construção. A figura de Adagoberto espalhada na cadeira de rodas, com uma barriga enorme e uma barba que acompanha o volume do corpo, não lembra em nada o policial da fotografia: bonito, forte e esperto. Tudo isso flutua na minha memória. “Aparece mais aí”, me diz. A mulher se esforça para cuidar dele e da c

Exercício de Criação Parte II

“Você teria aceitado ficar comigo naquela noite?”. Ela riria. Bambolearia com as mãos na cadeira, um sorriso lhe iluminaria o rosto, largo, e as dobras de pele sumiriam, os braços rejuvenescidos se lançariam à frente, alisariam o rosto envelhecido, lembrariam aqueles olhos, como num espelho, as imagens, os dois jovens. José não sabia expressar toda a extensão de seu espanto por ver luzir naquele rosto desconhecido tanto calor, não imaginaria que a recepção seria daquela forma, se não tivesse dito tudo o que fora dito, se não fosse o impulsivo de anos atrás, talvez pudesse salvá-la do esquecimento, e salvando – a, resgatasse a si próprio no redemoinho que agora o levava para a região dessas conjeturas, mesmo triste, parecia querer acreditar no que os olhos erguiam a sua frente, e, sentiu pena de si mesmo pela impetuosidade. Agora aquela imagem se desfazia como a fumaça que some no ar, como ele mesmo, José, homem comum, desfeito entre milhões de outros homens, sem nada de especial para s

Criação a partir do conto A Cabine de Juva Batella - Parte I

Após o terceiro toque, José, abatido, acatou o desânimo. O corpo não agüentava mais ficar no pequeno espaço da cabine, as roupas molhadas já incomodavam e certa angústia combatia a ponta de otimismo conseguida a custo na conversa com Marta. A chuva parecia que iria durar toda a noite. E ele não sabia se corria ônibus para sua cidade àquela hora. Não tinha como deixar aquele lugar, ilhado, pensou em se refugiar, durante o período de chuva, ali, na cabine, eventualmente. Ou retornar para o apartamento de Marta, mas receou incomodá-la, poderia estar dormindo ou falando com o filho ou se preparando para dormir com aquelas máscaras de beleza tão comuns às mulheres, prometendo rejuvenescê-las, acabar com rugas e pés de galinha. Talvez fosse melhor procurar um hotel barato, com o dinheiro que tinha conseguiria pagar o pernoite, não precisaria ficar exposto ao tempo como uma carcaça de automóvel abandonada. A noite crescia nas paredes e janelas e eram raros os transeuntes que se arriscavam em

Bruzundangas!

A paciência me permite dormir durante a longa viagem até o Rio Centro. Longe, muito longe, lá onde os escritores fundam sua cidade mítica e discutem os problemas que afligem tanto a ficção quanto a consciência que têm de estar num mundo onde a maioria das verdades está temporariamente suspensa e há um descrédito que parece permitir que tudo aconteça e que haja um novo linchamento de deus e da moral, porque a ética já vive enxovalhada. O poeta começa timidamente a abordar os pontos que tocam sua criação, afirma que os melhores e os piores dos mundos, sem exceção, foram criados por nossa imaginação, que tudo à nossa volta é o reflexo da cultura desenvolvida pelo homem para diminuir o grau de solidão que ele enfrenta ao perceber todos os dias sua solidão na criação do universo, todo o seu desamparo. O interlocutor que não deseja participar de todo o desencanto destilado pelo poeta crê em alguma ambição maior, talvez não uma idéia de um Demiurgo platônico, mas em coisas razoáveis como a ev